O mundo mudou e Trump vai decretando um fim melancólico da posição americana como centro hegemônico da economia mundial
Opinião - O Estado de S.Paulo
Temos de admitir que Donald Trump tem uma capacidade de mobilização sem par na história recente. Infelizmente, seus atos colocam em movimento uma dinâmica econômica e social perversa para o mundo, para o Brasil e para os Estados Unidos da América.
Os últimos dias, no entanto, mostraram que ele consegue sempre fazer mais. O tarifaço que está na boca do povo logrou o inimaginável: resgatou o governo Lula de suas piores avaliações, colocou o governador Tarcísio no fio da navalha e transformou o autoproclamado maior patriota em traidor da Pátria. Isso para não lembrar a opera buffa da tentativa de recuperar o passaporte para o ex-presidente ir falar com Trump.
Ignorando por um momento os episódios mais surrealistas, quero me concentrar na impressionante eficácia com que o governo Trump tem desmantelado pilares do mundo civilizado – um mundo que, até pouco tempo, eu considerava bem mais robusto do que agora aparenta ser. Ironias do sistema: ninguém esperava que o agente corrosivo do capitalismo emergisse justamente de suas entranhas. Três aspectos, em particular, simbolizam com clareza essa derrocada.
O primeiro é o comercial, em que o tarifaço contra o Brasil é apenas a ponta do iceberg. Não há dúvida de que Trump quer muito mais do que restabelecer condições tarifárias favoráveis aos Estados Unidos. Ele quer mesmo mexer com a distribuição espacial da produção em favor da indústria e dos serviços americanos e de empresas americanas. Mas isso tem seu preço.
Ao adotar esta atitude, Trump joga no lixo séculos de discussão econômica sobre como dar fluidez às decisões de alocação da produção para que a economia consiga graus melhores de eficiência, que resultam em níveis superiores de bem-estar, na forma de bens e serviços mais baratos para todos. Cada local constrói condições mais propícias a determinadas produções de bens e serviços que se traduzem em menores custos de produção. Por isso, um comércio sem grandes amarras conduz ao melhor bem-estar de todos os povos.
Num exemplo singelo, é óbvio que produzir carne no Brasil é mais barato do que nos Estados Unidos. Com o tarifaço, o consumidor americano irá comer carne produzida nos Estados Unidos num valor maior ou continuará a comer carne brasileira com uma “gordurinha” de 50% de tarifas.
O segundo aspecto é institucional. É voz corrente que a Organização Mundial do Comércio (OMC) já não representa mais nada, assim como Trump ainda nos primeiros dias de governo, jogou pelos ares a Organização Mundial da Saúde (OMS) e os esforços climáticos. No caso da OMC, décadas de negociações para construir um aparato de solução de conflitos comerciais foram carbonizadas. Não que a OMC fosse um órgão perfeito, longe disso, mas era o melhor que se conseguiu criar para dar ordem aos conflitos comerciais entre as nações.
Vale observar que nem o mais empedernido dos comunistas poderia imaginar que a maior destruição das instituições do capitalismo moderno seria conduzida justamente por um dos maiores ícones do livre mercado. Mas Trump vem operando o sepultamento da civilização com maestria.
O terceiro movimento da catástrofe é a atuação de Trump para enfraquecer a justiça ao desacreditar instituições judiciais e questionar publicamente decisões que lhe são desfavoráveis. Essa atitude incentiva seus apoiadores a desconfiar do sistema jurídico e trata investigações como se fossem perseguição política, promovendo um clima de desconfiança e hostilidade contra o Judiciário.
Além disso, ao tentar politizar o sistema judicial nomeando aliados para cargos estratégicos, Trump compromete a imparcialidade essencial ao funcionamento da justiça. Suas ações colocam em risco a confiança pública nas leis e na democracia, pois estimulam uma sociedade em que decisões judiciais podem ser manipuladas por interesses políticos momentâneos.
Causa realmente espanto a forma como as instituições americanas têm sido frágeis diante do presidente Trump. Já são inúmeras violações aos aspectos mais essenciais da democracia e da institucionalidade americanas, e o Poder Judiciário revela-se paralisado e dócil ao afrontamento de valores americanos. Infelizmente, tanto se falou em república de bananas e hoje presenciamos um quadro que só podemos caracterizar como desolador no cenário institucional dos Estados Unidos.
E tudo isso vem emaranhado em questões dos grandes negócios da economia americana. Na carta ao presidente Lula, ao lado da pressão contra a tentativa de uma moeda comercial alternativa ao dólar, a questão das big techs aparece como interesse mais imediato. O governo americano sempre defendeu suas empresas, em todas as partes do mundo, mas a intensidade da pressão contra o Judiciário brasileiro para impedir medidas regulatórias no campo das grandes mídias é algo nunca visto.
O mundo mudou e Trump vai decretando um fim melancólico da posição americana como centro hegemônico da economia mundial. É necessário compreender que não precisamos de menos governo. Precisamos de muito mais governo e políticas que possam garantir uma mínima estabilidade durante as próximas tempestades.
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