Guerrear contra um oponente que não tem poder de fogo poderia ser uma boa estratégia de Trump. Mas não é esse o caso da China
José Serra - O Estado de S.Paulo
Agora temos pouco mais de 100 dias de governo Trump, e sabemos que jamais poderíamos chamar esse mandatário de monótono. Em verdade, são 100 dias que mais parecem ter durado uns três anos e tornam o governo Biden algo longínquo em nossa percepção do tempo.
Se os 100 dias foram agitados, o futuro parece nos reservar a incerteza. Todos eles parecem alicerçados numa forma de fazer política e buscar poder que norteiam o comportamento de Donald Trump. Esta é a sua maneira de conduzir o governo: ameaçar com a guerra para se posicionar de forma privilegiada.
De fato, o governo Trump mais parece uma metralhadora giratória, iniciando guerras em todos os campos da vida americana. Primeiro, foi a guerra imigratória, depois a guerra contra as opções sexuais, contra as preocupações climáticas e o serviço público americano. Depois vieram as mais econômicas, em que se destaca a guerra comercial das tarifas, que jogou o mundo em grande incerteza. Agora veio a guerra orçamentária.
Importa tratarmos aqui das mais autodestrutivas: a comercial e a orçamentária. Comecemos pela guerra comercial, fazendo uma referência à frase recentíssima de Warren Buffett, que ninguém pode dizer que não entende de capitalismo: “Comércio não deveria ser uma arma”. Lógico que a história sempre mostrou o comércio como guerra, mas o mundo tem buscado, nos últimos anos, uma competição com regras civilizadas.
A guerra comercial segue como uma coleção de bravatas e recuos. Mas os sinais já são sentidos. O mundo todo está em compasso de espera, dada a esperada reorganização da localização da produção e dos fluxos comerciais. Mas engana-se quem acha que a questão é o comércio entre os Estados Unidos e a China. Há muito mais que isso e as conexões que vão muito além da territorialidade das duas potências são imensas.
Trump, hoje, tem a desvantagem de ter entregue seus objetivos já em seu primeiro mandato. A China, com administração muito mais estável, soube entender o significado econômico dos interesses que se aliam em torno de Trump. Ao mesmo tempo, promoveu políticas para amenizar os efeitos das barreiras tarifárias americanas. A crise que se impõe à economia chinesa a partir da guerra tarifária é uma crise de demanda. O risco é que o grande mercado comprador dos produtos chineses, a economia americana, reduza drasticamente suas compras.
A economia chinesa passou, no entanto, anos sendo preparada para enfrentar um segundo Trump. Não foi só para o sudeste asiático que parte da produção chinesa se moveu. As cadeias produtivas chinesas espalharam segmentos operacionais por diversos países em todos os continentes. Assim, a China passa a exportar produtos de origem chinesa a partir de outros países para os Estados Unidos, por exemplo.
Ao mesmo tempo, iniciativas como a Rota da Seda e as negociações na África e na América Latina para estreitamento de conexões produtivas e comerciais significam que, com certa rapidez, suprimentos com origem nos Estados Unidos podem ser rapidamente substituídos por outros parceiros. No caso brasileiro, a soja é o principal exemplo.
No caso americano, a guerra tarifária deve ser entendida como uma crise de oferta. Um choque de custos já é uma realidade, mas não devemos entendê-lo apenas como aumento no preço das “blusinhas”. O mais delicado é o choque de custos para as empresas que, para ganhar eficiência, construíram parcerias com produtores pelo mundo. Agora, estes enfrentarão um achatamento de suas margens de lucro, por custos maiores ou de seus mercados consumidores.
Guerrear contra um oponente que não tem poder de fogo poderia ser uma boa estratégia de Trump. Mas não é esse o caso da China. Anos de avanço de quem se tornou uma espécie de “fábrica do mundo”, com enorme sofisticação tecnológica e construção de parcerias pelo mundo afora podem significar uma grande vantagem contra uma política americana que, contrariando todo o discurso de décadas de multilateralismo, aposta apenas no próprio sucesso.
Na guerra orçamentária, a ideologia Trump mostrou-se de forma mais desavergonhada. Cortes inéditos na maioria das despesas, com ênfase em saúde, educação, assistência social e na transição verde. A preservação dos gastos em segurança e defesa reforça a noção de que Trump preserva sua aliança com os grandes contratos governamentais para as empresas americanas. Só que ir tão fundo no desamparo social pode custar muito à sociedade americana.
Para retomar Warren Buffett, na semana de sua fala anual: “Não acho uma boa ideia tentar projetar um mundo em que alguns países dizem hahaha, nós ganhamos. Talvez seja por isso que o fundo de Buffett esteja com níveis de liquidez imensos. Talvez ele tenha receio de que a autodestruição de Trump faça derreter o valor dos ativos no mercado internacional. Quando esse risco está no ar, melhor manter dinheiro em caixa do que correr o risco de perdê-lo na desvalorização de títulos e ações.
Creio que o mundo mereceria líderes mais responsáveis pelo futuro.
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