Retomar a proposta que elimina o direito de preferência da Petrobras nos leilões do pré-sal é um passo decisivo para reorientar o País
José Serra
José Serra - O Estado de S.Paulo
No caminho do Brasil, há uma pedra que precisa ser removida. Não é geológica, mas institucional – uma regra mal desenhada que bloqueia a concorrência e reduz o valor de nossa maior riqueza mineral: o petróleo. Retomar a proposta que elimina o direito de preferência da Petrobras nos leilões do pré-sal é um passo decisivo para reorientar o País no sentido do interesse público. Corrigir essa distorção é resgatar o princípio da igualdade de condições – base de qualquer leilão legítimo – e ampliar os recursos disponíveis para prioridades nacionais como saúde, educação e inovação.
Esse direito de preferência foi um enxerto tardio no projeto original que abriu o pré-sal à participação de outras empresas. Um acordo político costurado para garantir a aprovação no Congresso, mas que comprometeu o modelo adotado. O custo foi alto: menos competição, menor arrecadação e menos recursos para o Fundo Social, com impacto direto sobre áreas vitais para o desenvolvimento nacional.
A lógica dessa vantagem legal é insustentável. Todos sabem que a Petrobras é quem mais conhece o pré-sal – foi ela quem o descobriu. Mas o Estado criou uma assimetria concorrencial por lei. Um disparate. Com a mudança na Lei da Partilha, que abriu o setor à concorrência, os leilões foram destravados e tiveram êxito. Mas o direito de preferência, mantido como moeda de apaziguamento político, comprometeu a competição e reduziu o potencial arrecadatório. Se a Petrobras manifesta interesse, os outros recuam. Se ela não entra, os demais desconfiam. Em ambos os cenários, o Brasil arrecada menos – e perde oportunidades estratégicas.
O leilão de Libra, o primeiro do pré-sal, ilustra esse efeito. O certame terminou sem ágio, com proposta de um único consórcio: Petrobras (40%), Shell e Total (20% cada), e as chinesas CNPC e Cnooc (10% cada).
Outro exemplo marcante são as duas rodadas de licitações dos volumes excedentes da cessão onerosa. Na primeira, em 2019, a Petrobras exerceu o direito de preferência para Búzios e Itapu. Atapu e Sépia, mesmo com grande potencial e presença de majors, não receberam ofertas válidas. Na segunda rodada, em 2021, com regras mais claras e papéis previamente definidos, essas áreas foram finalmente arrematadas com ampla competição, mostrando como o tratamento desigual molda o comportamento dos agentes e o desenho final dos leilões.
Esses casos não apenas revelam os efeitos negativos da prerrogativa exclusiva, como também apontam caminhos para soluções concretas. Um deles é a possibilidade de o Conselho Nacional de Política Energética autorizar a relicitação de áreas do pré-sal sob o regime de concessão, inclusive campos devolvidos que, embora inviáveis na partilha, podem ser viáveis sob outro regime. Na concessão, a arrecadação se dá por royalties, participações especiais e bônus de assinatura – com ganhos diretos para União, Estados e municípios. Já na partilha, apenas a União recebe participação sobre a produção, enquanto os entes subnacionais perdem a participação especial.
O Campo de Peroba, devolvido pela Petrobras em 2021, é um desses casos. O consórcio havia oferecido 76,96% de excedente em óleo à União para ficar com a área. Já o Campo de Juruá, originalmente da Petrobras, foi devolvido à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), ofertado em 2019 sob o modelo de Oferta Permanente e arrematado pela Eneva por R$ 25,7 milhões. Localizado no Amazonas, o campo possui 25,9 bilhões de m³ de gás não associado, com potencial relevante. Mostra que ativos rejeitados sob certas condições podem revelar grande valor em contextos diferentes.
Além disso, a relicitação com bases mais flexíveis pode ampliar a diversidade de agentes no setor. Operadoras independentes com estratégias voltadas a nichos específicos, como pequenas reservas ou gás natural, ganham espaço, contribuindo para empregos, dinamização regional e arrecadação local. É uma chance de democratizar o acesso ao pré-sal e expandir os benefícios da exploração para além do eixo das grandes petroleiras.
Há quem defenda esse tratamento preferencial como proteção à Petrobras. Discordo. Nossa petroleira é um orgulho nacional – fruto de uma longa luta pela soberania energética, da qual participei como presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) entre 1963 e 1964. Não proponho restringi-la. Corrigir esse favorecimento legal é proteger sua saúde financeira e permitir que o País usufrua melhor os frutos do pré-sal. O Brasil precisa de leilões disputados, investimentos privados e arrecadação robusta. Precisa, sobretudo, de uma política energética que sirva ao País – e não a uma única empresa, por maior que seja o nosso orgulho por ela.
Como disse o ministro do petróleo da Arábia Saudita nos anos 70, a era da pedra não acabou por falta de pedra. Tampouco a era do petróleo terminará por falta de petróleo. Mas pode acabar sem que o Brasil colha todos os frutos dessa riqueza. O pré-sal pode – e deve – financiar o presente e o futuro: saúde, educação e a transição para energias renováveis, como o etanol. Tirar essa pedra do caminho é o primeiro passo.
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