Falta o compromisso político efetivo em torno da responsabilidade fiscal e da busca pelo equilíbrio permanente das contas públicas
Felipe Salto* - Opinião/O Estado de S.Pauo
A Lei Complementar n.º 101, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), completou 25 anos no dia 4 de maio. É tempo de retomar o seu espírito original.
O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso conseguiu melhorar muito a institucionalidade fiscal. Promoveu a renegociação das dívidas estaduais e municipais, por meio da Lei n.º 9.496/1997, estabeleceu metas para o resultado primário (aquele que não inclui os juros da dívida) e aprovou a LRF, a partir do estudo das melhores experiências internacionais.
José Roberto Afonso foi figura central daquele processo, do ponto de vista da concepção técnica e elaboração da proposta. A importância do episódio pode ser comparada ao da aprovação da Lei Geral de Finanças Públicas, a de número 4.320, em 1964, ainda no governo João Goulart.
A abrangência dessas legislações é nacional, incidindo sobre Estados, municípios e União. A LRF estipulou limites para o comportamento dos gastos com pessoal, obrigou a transparência nos atos da administração pública, por meio de relatórios de gestão e de acompanhamento da execução orçamentária, estabeleceu parâmetros e metas para os indicadores fiscais e trouxe as bases para uma política fiscal mais coesa, inclusive do ponto de vista federativo.
A limitação da dívida pública, prevista na Constituição, foi adotada para os governos subnacionais, com sucesso, promovendo uma mudança importante no padrão histórico das finanças locais. Hoje, o problema retornou, de certo modo, e comentarei, a seguir, como endereçá-lo à luz da própria LRF.
O País vivenciou 15 anos de melhoria dos seus indicadores fiscais, passando por diferentes governos. Desde 1999, a adoção das metas de resultado primário, sistema cristalizado na LRF, levou à geração de superávits primários e reduziu a dívida sobre o PIB.
Ocorre que, a partir de 2009, a adoção de políticas fiscais irresponsáveis, na esteira da chamada contabilidade criativa, começou a desmontar esse sistema. Na prática, produziam-se resultados fiscais falseados, por meio de descontos contábeis e licenças legais para jogar despesas para debaixo do tapete. Mailson da Nóbrega e eu escrevemos, neste jornal, o artigo Contabilidade criativa turva a meta fiscal, em 30 de novembro de 2009 (B2), para denunciar o início desse processo.
O episódio mostrou que nem só de regras e legislações vive a responsabilidade fiscal. É preciso haver compromisso político. Evidentemente, aprimoramentos podem e devem ser feitos, não só na LRF, mas também na Lei n.º 4.320/1964 e na Lei Complementar n.º 200/2023 (Novo Arcabouço Fiscal). Contudo, a grande ausente, hoje, no debate fiscal e na gestão das contas públicas é a ideia-força de que a responsabilidade fiscal é a chave para crescer.
Por meio da responsabilidade permanente, é possível alcançar juros mais baixos, investimentos mais elevados e maior crescimento econômico. Em última instância, é o meio para aumentar o bem-estar social. Esse raciocínio não está presente hoje no grupo político que comanda o País. A oposição, igualmente, não apresenta alternativa baseada nesse fundamento.
Uma das inovações necessárias diz respeito ao pacto federativo, hoje em frangalhos. Pude constatar, quando fui Secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, que o único órgão existente para tratar dos temas federativos, o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), transformou-se num fórum de deliberação de incentivos do ICMS. As grandes questões passam longe. Quando chegam, chegam já com o viés do governo federal, sem muito espaço para o debate qualificado.
Daí por que defendo, neste aniversário de 25 anos da LRF, resgatar a ideia do Conselho de Gestão Fiscal, o CGF. Ele está previsto no artigo 67 da lei e, até hoje, não foi criado. Para isso, bastaria uma lei ordinária. Suas funções envolvem o acompanhamento e a avaliação da gestão fiscal, com participação de todos os Poderes da República e das três esferas de governo.
Serviria para harmonizar e coordenar os interesses dos entes federados, elaborar e disseminar boas práticas de eficiência alocativa e de execução do gasto público, adotar normas gerais e padronizar entendimentos das cortes de contas, divulgar análises etc.
A LRF foi distorcida, em alguma medida, ao longo dessas duas décadas e meia, e seu espírito precisa ser resgatado. A ação dos órgãos de controle, em que pese sua importância, é heterogênea, quando comparados os diferentes Estados. Além disso, interpretações equivocadas de dispositivos da LRF levaram, em muitos casos, a um distanciamento do seu propósito inicial.
Mesmo assim, o saldo positivo da LRF deve ser exaltado. Em momento difícil para o País, quando o déficit público persiste na casa de 8% do PIB, se incluídas as contas com juros, e a dívida se aproxima dos 80% do PIB, bem acima da média observada nos países emergentes, é tempo de avançar.
Se a LRF fosse cumprida à risca, regra fiscal adicional alguma seria necessária. Falta, isso sim, o compromisso político efetivo em torno da responsabilidade fiscal e da busca pelo equilíbrio permanente das contas públicas.
*Felipe Salto - Economista-chefe da Warren Investimentos, membro do Conselho Superior de Economia da Fiesp, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo
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