"Os riscos da ingovernabilidade fiscal", artigo de José Serra

Para recuperar o edifício fiscal brasileiro, precisamos de compromissos do Executivo e do Congresso em torno da governabilidade

José Serra

Tenho, e sempre tive, a questão fiscal como tema central para o País. Entendo que há muita mistificação em torno da questão e que ele é muitas vezes tratado apenas como bandeira política de Estado mínimo. Por isso, gostaria de expor preocupações sobre o chamado “fiscal”, mas, por favor, não entendam que estou fazendo coro aos abutres que demonizam o “fiscal” apenas para ganhar dinheiro em operações especulativas.

A trajetória das contas públicas desenhada pela última Proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias revela uma situação de potencial bastante danoso ao País. E não é só porque ela mostra o quanto será difícil cumprir as metas postas pelo arcabouço fiscal que o governo Lula criou. E, em si, isso já é desastroso porque indica que o governo não cumprirá com o que ele mesmo propôs.

O superávit estimado pela LDO, para 2026, é de R$ R$ 34,3 bilhões, um pouco superior ao estimado para 2025. O problema é que uma receita adicional de R$ 118 bilhões é necessária para que este compromisso seja cumprido. Este valor não inclui a compensação da isenção do Imposto de Renda para valores de até R$ 5 mil e um abatimento para rendas de até R$ 7 mil, em tramitação no Congresso, por iniciativa do Executivo.

Não há como acreditar que alavancar quase 1% do PIB em novas receitas será tarefa fácil, dada a fragilidade das condições de negociação do governo no Congresso. Conquanto a máquina de cargos do governo federal tenha sido expressivamente distribuída entre os aliados, isso pouco se transforma em voto, tanto nas deliberações quanto nas avaliações dos vetos presidenciais aos projetos de lei que vão à sanção presidencial.

Se esse já não fosse um grande problema, a LDO ainda consegue anunciar o desastre para o restante da década. Pior, dá todos os argumentos para gerar um enorme conflito nas políticas públicas.

Um primeiro ponto de grande importância é a relação entre as despesas obrigatórias e discricionárias. Em 2026, ainda haverá um espaço razoável para a despesa discricionária, que se manterá acima dos R$ 200 bilhões, pouco menor que a estimativa para 2025. No entanto, em 2027, os precatórios, que estão fora da conta até 2026, voltam para o cálculo da despesa obrigatória. É o principal fator da redução do montante de despesas discricionárias a R$ 122 bilhões.

Mas o problema não para aí, a expansão dos compromissos de superávit primário a R$ 210 bilhões, em 2029, vai paralisar a máquina pública, dado que as despesas discricionárias passarão a quase inexistir, limitadas a pífios R$ 8,9 bilhões. É um prato cheio para os especuladores de plantão apontarem a inconsistência da política fiscal e demandarem prêmios de risco, na forma de juros reais ainda mais estratosféricos.

O quadro fiscal brasileiro é semelhante a uma doença degenerativa de longo prazo. Só que agora já parece inelutável que o paciente continue a sobreviver apenas por aparelhos.

Neste momento, o que podemos ver é a emergência de uma discussão sobre as grandes linhas das políticas públicas. Os compromissos de gasto com saúde e educação já estão na linha de tiro. Ao mesmo tempo, a reforma da reforma da Previdência está voltando à pauta, especialmente impulsionada pela expansão real do salário mínimo. Ou seja, compromissos basilares da sociedade brasileira estão em causa.

Não que não seja necessário discutir reformas e ajustes, mas o debate, ao que parece, é fragmentado e ocorre sem uma linha clara de comprometimento dos gastos públicos e das funções do Estado. A ausência de um quadro político que permita a composição dos interesses ameaça até nos endereçar a uma reedição do trágico teto de gastos estabelecido na Emenda Constitucional 95, a mais completa negação das políticas de governo e do planejamento das ações públicas.

Vale lembrar que propor uma LDO para 2026 que deixa transparente a inviabilidade dos compromissos postos no arcabouço fiscal é varrer toda a institucionalidade de Orçamento e planejamento que foi criada na Constituição de 1988 e reforçada com a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Para recuperar o edifício fiscal brasileiro, precisamos de compromissos do Executivo e do Congresso em torno da governabilidade fiscal. Conviver com um Congresso que gasta mais de R$ 50 bilhões em Emendas Parlamentares e não se responsabiliza com as contas públicas é uma coisa que a Nação não pode aceitar. Assim como o Executivo não pode ser populista e contemplar a Faria Lima ao mesmo tempo. Os ganhos reais do salário mínimo para todas as políticas sociais que estão sendo realizadas e turbinadas não são compatíveis com um superávit primário de 1,25% do PIB (R$ 210 bilhões) em 2029.

Passamos anos dizendo que o ajuste das contas públicas matava o investimento governamental, tão necessário para a infraestrutura do País. Agora é a hora de dizer, com muita angústia, que todas as políticas públicas serão atingidas. Triste país do conflito inconsequente.

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