"O tarifaço do Dia do Delírio", artigo de José Serra

Cabe avaliar o mal que podem fazer para a humanidade aqueles que vivem das bravatas, os que têm o poder nas mãos e não fazem ideia do que isso significa

José Serra

O Estado de S.Paulo

Donald Trump ameaçou e cumpriu, mesmo contra todos os analistas que não acreditavam que a irracionalidade tivesse se instalado na Casa Branca. As tarifas do “Dia da Libertação” perpetraram o maior choque comercial da História. Segundo o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, “embora a incerteza continue elevada, está cada vez mais claro que os aumentos tarifários serão significativamente maiores do que o previsto”.

Trata-se da maior tarifa média americana desde os anos 30. Perante os 3% atuais, as estimativas sobre a tarifa média, no pós-tarifaço, vão de 16,5% a 22%, segundo analistas e instituições financeiras. A única certeza é de que seu efeito será grande, o que já produz uma enorme fila de países à procura das autoridades comerciais americanas para negociar os termos do prejuízo.

A falta de critério técnico para a fixação das novas tarifas já virou chacota internacional e deve ser motivo de vergonha para as instituições americanas. Mas não cabe, aqui, enfileirar as cretinices da baunilha de Madagáscar ou da ilha de pinguins tributados. Cabe avaliar o mal que podem fazer para a humanidade aqueles que vivem das bravatas, os que têm o poder nas mãos e não fazem ideia do que isso significa.

Em primeiro lugar, vamos aos efeitos imediatos para a atividade econômica mundial. Uma série de instituições financeiras já fizeram revisões profundas em suas expectativas para o PIB americano neste ano. Segundo o JP Morgan, a previsão para o PIB de 2025 caiu de crescimento de 1,3% para retração de 0,3%. Outras instituições foram na mesma linha, com uma intensidade um pouco inferior. Mas o que importa é que o clima de recessão na economia americana já é uma realidade. Sendo a economia dos Estados Unidos tão importante no comércio mundial, o mesmo processo recessivo já se configura como de caráter mundial.

Não para por aí a deterioração das expectativas sobre o ambiente econômico americano. As tensões inflacionárias virão por todos os lados. Os custos da indústria americana serão carregados pelas compras de insumos onerados pelas novas tarifas. No mercado de consumo americano, o poder moderador das importações perderá muito de sua força. Analistas – por exemplo, o economista-chefe do Citi – projetam um ponto porcentual a mais na inflação.

O segundo ponto é uma questão do longo prazo. O protecionista dos mercados internos está no centro do próprio desenvolvimento capitalista, sendo sua primeira versão a proteção contra a supremacia competitiva inglesa nos desdobramentos da revolução industrial. Mas o mundo passou décadas buscando construir uma institucionalidade internacional que impedisse medidas unilaterais.

Do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt) à formação da Organização Mundial do Comércio (OMC), com firme liderança americana, um acordo comercial multinacional logrou estabelecer mínimas condições de políticas comerciais, reduzindo a tendência a guerras e ao protecionismo. Trump ateou fogo às instituições e a mecanismos que conseguiram dar equilíbrio ao comércio internacional, possibilitando seu crescimento. Por absurdo, Trump preparou o campo de batalha não apenas para suas próprias tarifas, mas legitimou as tarifas retaliatórias de parte de outros países, estabelecendo um clima de guerra comercial global inédito.

A introdução da Tarifa Base Universal, combinada com alíquotas elevadas para países com superávits comerciais ou barreiras não tarifárias contra produtos americanos, amplia o escopo do protecionismo. Mas o mais estranho é que Trump não parece definir parceiros, uma vez que a nova política não poupa sequer aliados históricos, como Canadá, União Europeia e Japão. Todos são inimigos dos Estados Unidos da América.

Um terceiro aspecto, o mais complexo, é que o “Dia da Libertação” detonou as expectativas no mercado financeiro. Os principais índices de ações das bolsas americanas derreteram, espelhando as enormes incertezas sobre o comportamento das grandes corporações e sobre a reação dos outros países aos negócios destas. As bolsas asiáticas e europeias experimentaram queima de capital de grande magnitude e justamente as grandes da economia digital foram as mais afetadas.

Muitos imaginam que Trump recuará, no sentido de que suas bravatas compunham uma cena teatral cuja razão de ser é melhorar sua posição negocial. Os últimos dias parecem enunciar que ele realmente acredita que o poderio americano será recuperado pela via que ele propôs. O recente apelo para que todos fiquem firmes na posição de defesa dos interesses americanos indica que a leitura mais racional não parece a correta.

Infelizmente, esse tipo de liderança, que substitui a razão pela retórica inflamada e o planejamento pela provocação, não ficou restrito às fronteiras americanas. Foi importado, imitado e até celebrado em outras partes do mundo. Seus efeitos, como agora se vê, vão muito além do folclore político: desorganizam mercados e corroem pilares institucionais duramente conquistados. A história cobrará seu preço, ou, talvez, já o esteja cobrando.

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