Ministério Público Federal diz que Ricardo Salles enganou PF sobre reunião com madeireiros

Policiais e procuradores têm embate sobre provas colhidas somente 2 anos após início do inquérito — e dias antes do fim da gestão Bolsonaro

Ricardo Salles

Arthur Guimarães - Metrópoles

Dois depoimentos colhidos na mesma data, nos últimos dias da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e após o inquérito da operação Akuanduba tramitar por quase dois anos, criaram uma divergência entre a Polícia Federal (PF) e Ministério Público Federal (MPF) em um evento determinante para comprovar, no inquérito do caso, a liderança do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles em uma suposta organização criminosa envolvida com a exportação ilegal de ipês e jatobás.

O embate reside sobre a presença de Salles em uma reunião com madeireiros interessados em liberar cargas retidas nos Estados Unidos. O político, que hoje é deputado federal pelo PL de São Paulo, disse à PF que não participou do encontro, em versão sustentada no relatório da investigação apresentado pelos policiais aos procuradores. Já o MPF diz que o ex-ministro mentiu sobre o episódio e ele esteve, sim, no evento.

A importância desses fatos é enorme: estavam na reunião representantes de madeireiras diretamente beneficiadas por normas expedidas pelo órgão dias depois, em um processo que começou a tramitar exatamente 2h23 depois do encontro na sede do ministério. Nas mais de quatro mil páginas do inquérito, o contexto desse evento, tido como peça-chave do caso, foi investigado superficialmente e esclarecido — talvez, de forma equivocada –, somente no dia 6 de dezembro de 2022, dez dias antes de encerrada a apuração.

Foi nesta data que foram ouvidos pela PF em Altamira, no interior do Pará, o próprio Salles e seu ex-subordinado no ministério, o tenente-coronel Olivaldi. Os depoimentos, obtidos pelo Metrópoles, são contraditórios, mas formam a principal arma usada pelos policiais e pelos procuradores do MPF para desvendar os detalhes da reunião, ocorrida no dia 6 de fevereiro de 2020. A PF comprou a versão de Salles. O MPF preferiu acreditar na versão do militar. Por este ponto de vista, a PF teria sido enganada. Nos autos públicos do processo, não há menção a outras estratégias de investigação usadas para elucidar o episódio.

Salles prestou depoimento ao delegado Alexandre Almeida Ferreira, o quarto a assumir o caso, na delegacia da PF de Altamira, no interior do Pará. O político afirmou que “acabou não participando” do encontro e “sequer ficou sabendo do que foi tratado”. Para a PF, o enigma ficou por isso mesmo, dentro de um caso de mais de 4 mil páginas recheado de atrasos e lacunas.
Não esteve presente

Sem ouvir várias das pessoas que poderiam confirmar a participação de Salles no ato, como secretárias e outros presentes, e sem explicar demais estratégias usadas para obtenção de prova, como cruzamento de dados de celular, a PF escreveu o seguinte no relatório parcial do inquérito entregue ao MPF, dez dias depois do depoimento: “foi indicado” “por diversos depoimentos” (sem citação de nenhum outro) que Salles “não” esteve presente “na referida reunião”.

Como a PF jamais terminou a investigação, e sequer conseguiu desbloquear um celular entregue por Salles, coube aos procuradores juntar todas as provas arrecadadas para tentar apresentar uma denúncia e salvar o caso, já neste ano. O telefone oferecido aos investigadores pelo ex-ministro, aliás, foi arrecadado posteriormente ao cumprimento do mandado de busca e apreensão determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em maio de 2021. No dia da operação Akuanduba, os policiais não conseguiram pegar o celular de Salles – há quem diga que ele teria sido avisado com antecedência e descartado o aparelho. O fato é que, até hoje, não se sabe se o celular em poder da PF (e ainda bloqueado) era o usado até então pelo político.

Esteve presente

A solução usada pelos procuradores para esclarecer se Salles esteve ou não na reunião foi acreditar em outro depoimento colhido no mesmo dia em que o ex-ministro foi ouvido: o de Olivaldi Alves Borges Azevedo, tenente coronel da PM Ambiental de São Paulo, levado por Salles para o ministério para ser parte da diretoria de proteção ambiental do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). O militar é réu ao lado do então chefe, após a Justiça Federal de Belém torná-los acusados por organização criminosa e outros crimes. O militar, segundo a investigação, foi promovido após a reunião do dia 6 de fevereiro de 2020 e teria se omitido em encaminhar documentos que poderiam atrapalhar os interesses dos madeireiros.

O MPF, na denúncia, disse que “o depoimento de Olivaldi revela que Ricardo Salles não disse a verdade”. Ao ser ouvido, o PM afirmou que, quando chegou ao ministério no dia 6 de fevereiro de 2020, a reunião já havia ocorrido. E que encontrou Salles “de saída”, mas tendo “conhecimento do assunto da reunião”. O ex-ministro teria até conversado com um interlocutor sobre formas de solucionar o problema dos madeireiros. O policial militar disse não saber “indicar se o ministro participou da reunião”, mas, para os procuradores, o relato já provaria que Salles “participou da reunião”, pois “sabia o assunto que foi tratado”.
Atrasos e lacunas

Essa é só mais uma fragilidade em uma investigação com outras lacunas, atrasos e omissões que atrapalharam o aprofundamento do caso, durante a gestão do ex-presidente Bolsonaro (PL). Entre os problemas, estão a troca sucessiva de delegados e a demora de até um ano para realização de análises financeiras. Outros detalhes também chamam a atenção, segundo fontes experientes ouvidas pelo Metrópoles.

Ao ser ouvido, em dezembro do ano passado, por exemplo, Salles não foi sequer questionado sobre a “variação patrimonial a descoberto” de sua mãe nem sobre a suposta “ocultação de receita” de seu escritório de advocacia”. Sem contar uma confusão que fez com que o celular do ex-ministro não tenha sido acessado pela perícia até agora, numa brecha vista como fatal para se chegar ao suposto alto escalão do esquema criminoso.

No dia 28 de agosto, Salles virou réu acusado de crime ambiental, advocacia administrativa, contrabando e pertencimento à organização criminosa. Aceita pela Justiça Federal do Pará, a denúncia do MP, no entanto, foi construída com base em um relatório parcial da PF de 51 páginas, entregue em dezembro de 2022. Mesmo após 2 anos e meio de apuração, os policiais jamais finalizaram o inquérito. Os procuradores precisaram criar um grupo de trabalho para, já quase na metade deste ano, revisar todos os achados e “salvar” a investigação, esvaziada por uma gama de problemas, segundo fontes ouvidas.

O primeiro revés do caso aconteceu quando Salles pediu exoneração, em 23 de junho de 2021. Isso fez com que a apuração saísse do Supremo Tribunal Federal (STF), foro do ex-ministro, e migrasse para a Justiça Federal de Altamira, no interior do Pará. Inicialmente, houve o entendimento de que o delegado responsável pelo inquérito, Franco Perazzoni, seguiria cuidando do assunto. Posteriormente, ele deixou a apuração, considerada delicada e técnica, por envolver meandros da legislação ambiental. A delegacia de Altamira, apesar de ter recebido ajuda à distância de núcleos de investigação da PF em Brasília, é considerada pequena, atolada de trabalho e com policiais novatos.
“Não teria problema nenhum”

Procurado pela reportagem, Salles reiterou o que afirmou aos policiais. “Não participei (da reunião). Mas, se tivesse participado, não teria problema nenhum.”

Em nota, a PF afirmou que “o Ministério Público Federal entendeu suficiente o trabalho realizado pela equipe de investigação e optou pelo oferecimento da denúncia”. Disse ainda que “não se manifestará sobre o caso”, “tendo em vista seu recebimento por parte do Poder Judiciário e inauguração da ação penal”.

O Metrópoles tentou contato com o procurador responsável pelo caso, mas ainda não obteve retorno.

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