Empresa de secretário de Educação em SP é punida e proibida de vender para o poder público

Multilaser também atrasou entrega de notebooks para o governo de SP. O secretário Renato Feder, no entanto, optou por não punir a própria empresa

Tarcísio de Freitas e Renato Feder


Gustavo Côrtes e Marcelo Godoy - Estadão

A Multilaser, empresa do secretário de Educação de São Paulo, Renato Feder, acaba de ser proibida de assinar novos contratos com o poder público por não entregar dentro do prazo notebooks comprados pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). A inclusão na lista de proibidos de contratar da Controladoria Geral da União (CGU) vale por 15 dias, a contar de 1.º de agosto. A empresa nega a acusação e diz que vai recorrer da punição.”

Em caso semelhante ocorrido em São Paulo, a decisão foi outra. Feder decidiu poupar a própria empresa de sanção por atraso. Só a Multilaser, segundo dados da secretaria, tem de entregar ainda 34.368 notebooks de 96.889 contratados. A decisão beneficiou outras três firmas.

Na ocasião, a secretaria ignorou o cronograma de entrega escalonada dos equipamentos contratados em dezembro de 2022, desde que tudo estivesse na Pasta até 31 de agosto, prazo final para a entrega.

Em nota oficial, Feder informou que, “na fiscalização da execução de tais contratos, a Seduc, em 24 de fevereiro, notificou a empresa pelo atraso na entrega dos notebooks licitados em maio de 2022″. A nota segue, informando: “Com isso, o prazo final de entrega dos equipamentos foi prorrogado até 31 de agosto.”

A pasta comandada por Feder é responsável pela execução e pela fiscalização dos contratos com a empresa da qual ele é sócio por meio da offshore Dragon Gem, que detém 28,16% da Multilaser e tem sede em Delaware, estado americano conhecido como paraíso fiscal. Em razão disso, conforme revelou o Estadão, ele entrou na mira da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo, que o investiga por conflito de interesse.

A Multilaser assinou, em 2022, três contratos com a Seduc para a entrega de tablets e computadores. O último deles, de R$ 75,9 milhões, foi fechado pelo governo paulista em 21 de dezembro de 2022, a apenas 11 dias antes de Feder assumir a Pasta na futura gestão do governador Tarcísio de Freitas e quando seu nome para o cargo já havia sido anunciado. Na época, o grupo do então governador Rodrigo Garcia (PSDB) buscava se aproximar de Tarcísio, o governador eleito, que Garcia apoiara no segundo turno da eleição.

Ao todo, os contratos firmados com a Multilaser chegam a R$ 200 milhões. De acordo com a secretaria, até o momento, a empresa entregou 62.521 unidades das 96.889 contratadas – 65% do total. Desse total, a Seduc informou que pagou, até o começo desde mês, 35% dos equipamentos, o que corresponde a 34.361 unidades. Segundo dados do Sistema de Gerenciamento do Orçamento (SIGEO), do governo do Estado, isso significa que até o momento foram pagos à empresa R$ 68,7 milhões e empenhados outros R$ 15 milhões.

Ainda de acordo com a secretaria, no dia 10 de agosto faltava a entrega de mais 34.368 notebooks. “Os pagamentos referentes a esse montante só serão realizados após a efetiva comprovação da entrega. Caso haja descumprimento do novo prazo limite estabelecido, a contratada sofrerá as penalidades previstas em contrato”, informou a secretaria”, informou a pasta.

As ordenações de despesas com os contratos da Multilaser – fechados na gestão anterior – são feitas na secretaria pela Coordenadoria de Informação, Tecnologia, Evidências e Matrículas (CITEM), subordinada ao gabinete do secretario. Feder afirmou por meio de sua assessoria que não fechou nenhum novo contrato com a empresa da qual é sócio.

O Estadão revelou, no entanto, que a a Multilaser também venceu licitações em secretarias comandadas por colegas de governo de Feder desde janeiro de em 2023. Juntos, elas apontam para compras no valor de R$ 243 mil desde janeiro. O maior negócio fechado neste período é para fornecimento de material hospitalar para o Instituto de Assistência Médica do Servidor Público Estadual (Iamspe), de R$ 226 mil.

A proibição de contratar com o poder público vale para todo o País. Ela aconteceu um dia antes de a gestão Tarcísio homologar a mais recente vitória da Multilaser em uma licitação no Estado. Ou seja, essa homologação se deu antes do início do período da punição, que começou a valer no dia 1.º. A promotoria deve apurar se a falta de sanção de São Paulo pelo atraso de entrega dos equipamentos para a Educação permitiu ou não que a licitação fosse homologada.

A última homologação de ata em favor da Multilaser tratava de um negócio com o Iamspe, entidade que está sob a alçada da Secretaria de Gestão e Governo Digital, comandada por Caio Paes de Andrade. O edital prevê a entrega de “fita com área reagente para verificação de glicemia capilar, com qualquer química enzimática e método de leitura em monitor portátil”. Outras 44 concorrentes participaram.

Segundo informou o governo por meio de nota, a oferta da empresa foi 36,25% menor do que o melhor preço registrado na última ata de compra. Em outro caso, envolvendo o governo federal, a Multilaser conseguiu assinar um contrato mesmo constando no cadastro da CGU como empresa proibida de contratar.

Três dias depois da publicação da punição, o Diário Oficial da União registrou que o Instituto de Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP, câmpus Salto) assinou com a empresa o termo de contrato de compra nº 06-364/2023 para a aquisição por R$ 82,8 mil de notebooks, em licitação já homologada anteriormente. Ele tem vigência de 4 de agosto de 2023 a 3 de agosto de 2024.

Especialistas apontam indícios de conflito de interesse

Para especialistas em direito administrativo e público ouvidos pelo Estadão, o caso deve merecer a atenção do Ministério Público Estadual e dos demais órgãos de controle do Estado. Seria preciso explicar as razões da ausência de punição à empresa à luz da decisão da UFPR. “Há indício de conflito de interesse. É preciso apurar”, afirmou o professos de Direito Administrativo da Universidade de São Paulo (USP), Marcos Perez.

A Procuradoria-Geral de Justiça apura desde março a hipótese de que Feder tenha incorrido em desvio de poder em razão do conflito de interesse, o que, em tese, poderia configurar improbidade administrativa. Feder prestou esclarecimentos, alegando a legalidade do contrato feito pela Secretaria de Educação em razão da inexistência de impedimento legal para o exercício do cargo em função de ele ser sócio da empresa.

Para Carlos Ari Sundfeld, professor da escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), de fato a lei não impede que Feder seja secretário em razão da existência dos contratos da Multilaser com sua Pasta, mas o conflito de interesse pode ocorrer caso fique comprovado algum ato direta ou indiretamente vinculado a ele que tenha beneficiado indevidamente a Multilaser.

“É necessário verificar as condições de descumprimento do contrato e se a reação da secretaria atendeu ao interesse público.” Tanto ele quanto Perez afirmaram, no entanto, que, se estivessem no lugar de Feder, ou rescindiriam o contrato ou recusariam o convite para dirigir a secretaria. “Não sou tolo de manter uma contratação como essa, pois o conflito de interesse pode mais cedo ou mais tarde acontecer. Não vale a pena trocar a reputação construída durante uma vida por um contrato de computadores”, afirmou Perez.

Em sua manifestação ao Ministério Público, Feder se comprometeu por escrito a fazer o que disse em nota ao Estadão: não firmar novos contratos com a Multilaser durante sua gestão.

No governo de José Serra (2007-2010), um caso similar resultou na demissão do então secretário de Comunicação, Hubert Alquéres, sócio do Instituto Japi de Ensino Superior, que venceu três pregões para oferecer cursos de formação de professores de escolas estaduais no valor de R$ 607 mil. Na ocasião, os contratos foram celebrados com a Secretaria de Educação, que não era comandada por Alquéres.

Multilaser nega irregularidades e diz que está recorrendo

Na quinta-feira, dia 10, a Multilaser negou qualquer irregularidade, bem como, a exemplo da secretaria, reafirmou a legalidade de sua contratação. E minimizou os contratos assinados neste ano com o governo paulista, afirmando: “Os faturamentos associados a essas secretarias corresponderam a um valor extremamente reduzido, totalizando menos de 0,03% da receita global da companhia”.

O Estadão voltou a procurar a Multilaser para questioná-la sobre a punição recebida e registrada no cadastro da CGU em razão do contrato firmado com a UFPR e também sobre o contrato firmado com a IFSP. A empresa afirmou na sexta-feira, dia 11, que “referente ao processo mencionado sobre a compra dos monitores, esses já foram entregues em 12 de junho de 2023, diferentemente do que foi contestado, fato este desconsiderado pela UFPR na aplicação da sanção administrativa”.

“Estamos recorrendo administrativamente e, se necessário, tomaremos as medidas judiciais também.” Sobre o IFSP, a empresa informou que “tanto o Tribunal de Contas da União quanto o Superior Tribunal de Justiça concordam que sanções administrativas afetam somente o futuro, não retroagindo”. “Assim, processos de contratação em andamento não são afetados. Essa interpretação se aplica também ao caso do IFSP, mesmo com o contrato dentro da sanção, pois o processo já havia começado.”

A empresa reafirmou ainda que deve entregar os equipamentos que faltam à Secretaria da Educação de São Paulo até 31 de agosto. “Assim sendo, uma vez que todos os prazos estão sendo respeitados conforme o combinado, não há razão para suspeitas de tratamento desigual.”

O Estadão também entrou em contato com o IFSP, mas não obteve reposta. Por fim, procurou o ex-governador Rodrigo Garcia para saber por que sua gestão resolveu assinar, a dez dias do fim, um contrato de R$ 75,9 milhões com a Multilaser, mas ele não quis se manifestar.

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