Os golpistas e os republicanos

Investigação sobre o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro mostra que militares de fato tramavam levante, que só não aconteceu porque golpistas sabiam não ter apoio do Alto Comando



O Estado de S.Paulo

As Forças Armadas não exercem um “poder moderador” na República nem muito menos o Exército é tutor da democracia no País. É inegável, porém, que um golpe de Estado para impedir a posse de Lula da Silva, eleito legitimamente para a Presidência da República, só não foi tentado após a derrota de Jair Bolsonaro na eleição, entre outras razões, por causa da firmeza do Alto Comando do Exército em não se desviar um milímetro sequer dos papéis e responsabilidades impostos aos militares pela Constituição.

Assim já parecia pela prevalência da ala legalista da Força Terrestre sobre os golpistas durante os quatro anos do tenebroso mandato de Bolsonaro. Por mais irresistível que tenha sido o canto liberticida do ex-presidente aos ouvidos de militares recalcitrantes em aceitar a ordem constitucional de 1988, o Exército, como instituição de Estado, permanente, jamais emitiu sinal de que o apoiaria em suas loucuras. Há poucos dias, isso ficou evidente após a revelação, pela revista Veja, do chamado “roteiro do golpe” – documento apócrifo enumerando uma espécie de checklist da sedição – encontrado pela Polícia Federal (PF) no celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, atualmente preso no Batalhão de Polícia do Exército, em Brasília.

O documento apreendido pela PF no celular de Mauro Cid mostra o desassombro com que militares no entorno de Bolsonaro, entre os quais alguns comandantes de tropas, urdiram um golpe contra a supremacia da vontade popular. Não fosse tudo isso muito grave, seria risível o discurso falacioso dos golpistas em pintar um golpe contra a Constituição com as tintas desbotadas de uma legalidade de fancaria a pretexto de “defendê-la”.

A audácia do bando, para o bem da democracia no Brasil, ficou circunscrita às conversas num grupo de WhatsApp intitulado “Doss”. Jamais ganhou as ruas em razão do medo dos sediciosos de serem punidos pelo Alto Comando. As conversas revelam que a não adesão da cúpula do Exército aos desígnios golpistas de militares que não valem as solas do coturno que calçam foi o fator dissuasório principal para que a intentona não fosse adiante. Um dos golpistas, o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, chega a lamentar expressamente a baixa adesão de seus superiores às tramoias. “Salário garantido, guerreiro com certeza absoluta de não guerrear. Ficou bom demais para querermos sair desse conforto. Não vai rolar”, escreveu ele, como “desabafo” pela atitude do Alto Comando em se manter fiel à Constituição.

“Como instituição de Estado apartidária, o Exército prima sempre pela legalidade e pelo respeito aos preceitos constitucionais”, disse o comando da Força Terrestre por meio de nota. “Os fatos recentes (a divulgação da tramoia golpista entre Cid e outros oficiais) somente ratificam e comprovam a atitude legalista do Exército de Caxias”, conclui o documento. De fato, como instituição permanente que é, o Exército jamais deu a entender que extrapolaria suas atribuições constitucionais ou se lançaria numa aventura golpista, menos ainda por um desqualificado como Bolsonaro. A Força sempre se manteve em seu lugar, vale dizer, ao lado da Constituição, malgrado o fato inescapável de que no seio da caserna há militares golpistas.

De fato, as ações que o Exército tem tomado desde que o envolvimento de militares da ativa na tentativa de golpe começaram a vir a público não dão margem para que a sociedade duvide da disposição da Força Terrestre para lidar com os sediciosos de maneira implacável. E isso, em alguns casos, pode significar deixá-los a cargo da PF e da Justiça civil para que respondam pelos eventuais crimes comuns que tenham cometido.

Uma tentativa de golpe de Estado implica gravíssimas consequências. Sobre cada indivíduo, civil ou militar, da ativa ou da reserva, que atentou contra a Constituição deve recair o peso das leis, na medida de sua responsabilidade. É assim que funciona no Estado Democrático de Direito e é assim que a democracia se defende de seus algozes.

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