Entrevista de Ricardo Nunes ao Estadão

Prefeito de São Paulo é contra a inclusão do ISS na reforma tributária e diz que comitê de gestão de recursos tira autonomia das prefeituras

Ricardo Nunes

Mariana Carneiro - Estadão

O prefeito da maior cidade do País, São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), é um dos principais pólos que se opõem à inclusão do ISS (tributo municipal) na reforma tributária. Além de estimar uma perda de R$ 15 bilhões por ano na capital com a proposta, ele afirma que a criação de uma agência centralizadora de gestão dos recursos retira a autonomia dos municípios.

“Como se toca uma cidade perdendo uma receita dessas e ficando depois refém de um comitê que vai discutir a distribuição dos recursos?”, questiona ele em entrevista ao Estadão.

Para Nunes, a reforma deveria priorizar a complexidade do ICMS, imposto estadual, e a tributação federal de PIS e Cofins. “Tudo bem que a gente queira ajudar a indústria, ajudar o sistema financeiro, mas tirar dos municípios para ajudar a resolver o problema financeiro do governo federal é fazer com que os municípios que fizeram a sua lição de casa, que tiveram austeridade e responsabilidade fiscal, que isso não vale nada”.

Veja alguns trechos da entrevista concedida nesta segunda-feira, 5, véspera da apresentação do relatório do grupo de trabalho da reforma tributária.

Por que algumas capitais são contra a reforma?
Temos na nossa Constituição uma divisão muito clara dos três entes federados. E tem a questão da municipalização, que é o fortalecimento dos municípios; é muito importante. Os argumentos apresentados na PEC 45 (proposta utilizada como base para a reforma) fazem com que os prefeitos, não só os das capitais, mas das grandes cidades, tenham algumas preocupações. Por exemplo: para a cidade de São Paulo, a perda de R$ 15 bilhões por ano é muito preocupante. Mas tem uma questão mais ampla. São Paulo tem 12,5 milhões de habitantes, maior do que Portugal. Como vamos ficar atrelados a uma questão de distribuição de recursos concentrados no governo federal e no governo estadual? Queria fazer um parênteses, que ajuda a ilustrar um pouquinho. A gente está vendo os prefeitos das cidades do interior que ficam lá em Brasília pedindo para ter uma ambulância. Acho que é algo que não engrandece os municípios, a importância do que cada prefeitura desenvolve na sua cidade.

O sr. está dizendo que as prefeituras ficarão dependentes?
Exatamente. Nenhum prefeito quer ficar com o pires na mão. E a gente vai deixar de ter uma situação muito importante, que é cada prefeito poder ter ações que tornam seus municípios competitivos, atrativos para investimentos. A partir do momento que você vai ter uma arrecadação totalmente centralizada, você desestrutura isso. No ano passado, o saldo entre admissões e demissões de emprego em São Paulo foi positivo em 186 mil empregos, devido a uma série de ações que a gente desenvolveu para poder atrair empresas e investimentos e gerar um ambiente saudável. Quando você tira essa questão das mãos dos prefeitos, é muito ruim.

Pode dar um exemplo?
Vou dar um exemplo prático. Há poucos dias, recebi o ministro Wellington Dias (Desenvolvimento Social), que falava da assistência social. Eu disse para ele que meu orçamento deste ano na assistência social é de R$ 2,1 bilhões, e vou receber só R$ 40 milhões do governo federal. Então, tudo está muito concentrado nas despesas do município. Os municípios estão trabalhando para ter a sua arrecadação e poder fazer frente às suas necessidades. Quando você tira isso, é muito ruim. São Paulo vai perder R$ 15 bilhões. E como se toca uma cidade perdendo uma receita dessas e ficando depois refém de um comitê que vai discutir a distribuição dos recursos? Tem outra coisa. A questão dos serviços, de serem tributados em 25%. Tudo bem que a gente queira ajudar a indústria, ajudar o sistema financeiro, mas tirar dos municípios para ajudar a resolver o problema financeiro do governo federal é fazer com que os municípios que fizeram a sua lição de casa, que tiveram austeridade e responsabilidade fiscal, que isso não vale nada. Tanto faz.

O governo diz que o IVA pode fazer com que todos ganhem com o crescimento da economia.
Isso é uma conversa fiada. Eu tenho falado isso: a Argentina tem IVA e a inflação está 108% ao ano. Então, não é um IVA que vai fazer nenhum país crescer. É um ambiente saudável, uma boa sinalização para os investidores, é você não gastar mais do que arrecada, ter uma ação muito forte de combate à corrupção. Então, acho que isso aí vai ajudar as questões das finanças do governo federal, mas quem está lá na ponta, na cidade, vai acabar sendo prejudicado com essa situação.

O que o sr. defende?
A gente está defendendo então que eles separem o ISS. É importante ter a reforma tributária, queria deixar esse recado. Nós, da Frente Nacional dos Prefeitos (entidade que reúne os líderes das capitais e grandes cidades), somos a favor da reforma tributária, mas a gente tem que fazer as coisas um passo por vez, sem fazer uma grande transformação que pode gerar um um problema muito grave ali na frente.

Mas então a proposta de vocês é retirar o ISS da reforma?
Nossa ideia é tirar o ISS. A gente precisa simplificar, tem milhares de legislações que falam do ICMS. Acho que fazer a simplificação tributária é fundamental para dar uma maior segurança ao empreendedor. Sou empresário, eu sei o que é isso. São muitas legislações, são muitas variantes com relação à questão da tributação. Mas o ISS não é um imposto hoje que gera problemas do ponto de vista de discussões judiciais. Isso está muito no contexto de ICMS, PIS, Cofins. Então, se a gente fizer uma reforma tributária que faça a simplificação dos tributos federais e estaduais e deixe o ISS (de fora), é o melhor cenário.

Mas o governo fala da importância em criar um imposto único para bens e serviços. E isso não seria possível se excluísse o ISS da reforma.
Eu estive conversando com o Bernard Appy (secretário extraordinário da reforma tributária) e com o deputado Aguinaldo Ribeiro (relator da proposta na Câmara) e eles dizem isso. E eu estou falando: vamos pegar um exemplo prático? A Argentina. Se o IVA fosse a questão, a Argentina não estaria nessa situação. Não é isso que vai resolver; a gente precisa fazer uma simplificação. Mas, no país Brasil que tem dimensões continentais, em que você tem cidades-países, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, como é que você vai deixar a cidade engessada e sem a sua capacidade de adotar ações de políticas públicas que você desenvolveu para uma melhor arrecadação, melhor uso dos recursos? E a gente tem que ficar na dependência de ações de governo federal, de governo estadual. Os municípios têm, cada vez mais, demonstrado a sua capacidade de resolver os seus problemas, inclusive do ponto de vista de arrecadação tributária. Eu reduzi vários impostos e acabei aumentando a arrecadação numa ação de eficiência, de ser um ambiente de segurança jurídica para atrair investidores. Agora, não tem a mínima lógica centralizar tudo para depois os prefeitos ficarem lá com pires na mão, pedindo recursos. Isso está errado. Cada município tem que ter a sua autonomia, a sua independência e não ficar se comprometendo com acordos políticos para receber um benefício. Isso é antidemocrático, isso não é razoável.

Mas São Paulo não perde arrecadação para municípios com a guerra fiscal, que acabaria com a unificação?
A gente tinha esse problema até a lei complementar 156, quando cada município poderia colocar o que quisesse de alíquota. Tem cidade que cobrava 0,25%. Com a lei de 2016, criou-se um piso de ISS de 2%, inclusive responsabilizando os prefeitos civil e criminalmente se eles fizessem uma ação menor do que isso, o que deu uma certa ajustada. Essa competição entre 2% e 5% é uma situação que eu diria normalizada/ não existe assim uma grande questão dessa guerra do ponto de vista do ISS. O que se tem de discussão é que se paga o ISS no local da sede ou no local do serviço. É uma coisa que a gente pode corrigir. A cidade de São Paulo não tem problema nenhum em perder alguma coisa que a sede é aqui, mas o consumo é em outros municípios. Mas isso é um problema do ISS que a gente pode resolver. De uma forma geral, o que a gente não pode é enfraquecer os municípios. Vamos deixar os municípios numa situação muito complicada para resolver os problemas de falta de caixa do governo federal. Eu escutei publicamente do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que ele não votará nada que vá fazer com que os municípios percam a sua arrecadação. Ele falou isso publicamente no evento do Lide em Nova York, em 9 de maio. Então, estou muito confiante e acho que a gente deve ter isso aí garantido pelo Lira, porque é um compromisso muito sério que ele fez publicamente.

Vocês aceitariam negociar se o governo aumentasse a participação dos municípios no bolo da divisão da arrecadação, como chegou a ser cogitado? Ou se fizesse alguma contrapartida no transporte público?
A gente teve só no ano passado, pela única vez, uma participação do governo federal em um pedacinho do valor que a gente deve em gratuidade do idoso com 65 anos ou mais. O subsídio no ano passado foi de R$ 5,1 bilhões, e eu recebi R$ 160 milhões (do governo federal). A gratuidade é uma legislação federal que fica a conta para os municípios. Então, a gente tem uma preocupação grande, porque como é que você vai controlar essa questão de ter essa voracidade do governo federal de tomar os recursos e essa dependência que os municípios vão acabar tendo com relação à distribuição dos recursos? Se os municípios estão trabalhando, fazendo a sua lição de casa, trazendo receitas, por que mudar esse sistema e centralizar? Por que não fazer uma primeira etapa dos tributos federais, depois uma segunda etapa no Senado, regulamentando a questão da unificação do ICMS. E depois, se tudo der certo, lá na frente, a gente parte para poder fazer uma uma unificação de todos os impostos. Mas com algo já testado. Fazer algo de forma abrupta, de uma vez, é muito arriscado; as pessoas não estão percebendo.

Por que é arriscado?
A gente pode gerar um colapso na cidade. Imagina eu tendo que fechar um hospital, uma UBS, uma UPA? É algo muito sério e a gente precisa fazer isso de forma gradual e com responsabilidade. É o dia a dia dessas cidades-países que será prejudicado com essa reforma, do tamanho que eles querem fazer e com a falta de informação que a gente observa da parte deles.

A proposta de reforma sobre a qual se trabalha hoje é do presidente do seu partido, Baleia Rossi (MDB-SP). Como o sr. atuará politicamente contra a reforma?
Com transparência. Falei para o Baleia que não tem sentido o que ele está fazendo. Ele trouxe o deputado Aguinaldo (Ribeiro), que continua insistindo em teses que comprovadamente… como eu disse, olha a Argentina. Essa história de que, com o IVA, o PIB vai crescer, isso não existe, não tem base que nos assegure isso. É uma suposição. Isso que estou falando não sai da minha cabeça, são os auditores fiscais, o pessoal da secretaria da Fazenda, os melhores profissionais que temos, é que fizeram os estudos. Acho que eles querem resolver outros problemas, dentro desse contexto de que tem que ser feita alguma coisa. Eu acho que realmente precisa ser feito, mas não nessa dimensão que estão propondo, a gente precisa ter um pouco mais de cautela.

Mas como o sr. vai atuar politicamente?
Estou conversando com todos os deputados de todos os partidos, do MDB, do PT, do PL, do Podemos. Já tive reunião com o líder da bancada paulista, Antônio Carlos Rodrigues (PL-SP). E sempre colocando essa preocupação, de que não somos contra a reforma tributária. Somos contra uma reforma que possa e que vai acabar causando um problema muito grave para os municípios no período curto. Porque daqui a algum tempo, quando tiver a transição, eu já não seria mais perfeito, mas a responsabilidade com a geração futura é muito grande.

Nas contas do governo, a grande maioria das prefeituras não perdem com a reforma. O sr não teme acabar isolado?
Ninguém tem muita certeza desse “vai ganhar”. O que a gente tem de forma ampla é que os que com certeza os que perdem representam 60% da população. Então, você vai ter aquele município lá que tem 1 mil, 2 mil habitantes, pode ter algum benefício. Mas a grande maioria das pessoas vão acabar afetadas. Na pandemia, nós tínhamos 1.560 leitos de UTI e 23% dos nossos leitos não eram (ocupados por pessoas) da cidade de São Paulo. Então, essas cidades acabam tendo que absorver muitos problemas de outros municípios.

Na reunião de sexta, da FNP, houve algum avanço em possível negociação?
Acho que agora vai ser muito de cada prefeito colocar a situação para os deputados. Eu duvido muito que um deputado, com todas as informações que estamos prestando, vá votar num risco tão grande que é o texto original da PEC 45. O relator nos disse que vai fazer algumas alterações, vamos aguardar. Mas se tiver uma situação que exclua o ISS desse contexto, ele poderia ter o apoio de todos nós. Por que realmente é preciso simplificar o sistema tributário brasileiro, mas sem colocar os municípios de joelhos.

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