Por que aprovar o projeto que vai muito além das fake news

Houve erros do Palácio, desencontros na base governista, pressão e jogo sujo das Big Techs – mas a regulação das redes está madura e precisa ser aprovada


Rodrigo de Almeida - Veja

Teve de tudo nas últimas semanas, em muitas tramas paralelas, erros do Palácio do Planalto, desencontros entre ministérios e na própria base de apoio ao governo, pressões por todos os lados, articulações, mal-entendidos, jogo pesado com campanha gigantesca patrocinada no Google em benefício do Google e disseminação de fake news pelas próprias Big Techs – mas nesta terça-feira vai a plenário, enfim, a primeira votação do Projeto de Lei 2360/20, com texto final relatado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP). O Congresso precisa aprová-lo. O Brasil precisa dessa lei.

Inicialmente pensado como uma forma de conter a disseminação de informações comprovadamente falsas – razão pela qual foi batizado de PL das Fake News – o projeto propõe, no limite, a regulação das plataformas digitais, como Google, Meta, Twitter e TikTok, e institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Como ressaltou a reportagem de capa da última edição de VEJA, trata-se de um revés inédito para as Big Techs, num país onde elas se acostumaram a criar e adotar suas próprias regras, sem satisfação a ninguém. Com pesos e medidas diferentes inclusive do que adotam no Norte global.

Com o projeto hibernando nas gavetas da Câmara, o Brasil enfrentou anos de escalada de ataques à democracia e discursos de ódio, propagação de conteúdos falsos e desinformação eleitoral e baixíssima transparência das plataformas até que a troca de governo, o golpismo de 8 de janeiro e a espiral de violência nas escolas impulsionassem a aceleração do debate sobre o projeto. Quase 80% da população se mostra a favor da regulação das redes sociais.

Não tem sido sem emoção, reveses e equívocos. A coluna apurou, por exemplo, o quanto o governo patinou no tema. A começar pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom), que pareceu perdida nas últimas semanas. “À certa altura, a Secom entrou em pane”, definiu uma fonte que participou intensamente dos debates envolvendo o governo, o Congresso, o relator do projeto e organizações da sociedade civil.

Enquanto parte do governo estava com o presidente Lula na China, a Esplanada bateu cabeça, sem coordenação de comunicação e de articulação política. Vozes do Ministério da Justiça pareceram não se entender com o relator do projeto. O Ministério da Cultura precisou se esforçar para se entender com o Palácio. Líderes partidários da própria base de apoio ao governo não se entenderam entre si. Entre as organizações da sociedade civil apoiadoras, de diferentes campos, defendiam o texto mas em caminhos paralelos.

Com a patinação da pauta, o jogo tornou-se ainda mais pesado. A base de oposição bolsonarista avançou na produção de fake news contra o próprio projeto, as Big Techs ajudaram a difundir falsas ideias tentando classificá-lo como uma ode à censura e à liberdade de expressão, vozes evangélicas recorreram até a conteúdo falso relacionado à Bíblia como um exemplo de ameaça do projeto, uma associação de lobby que reúne Meta, Google e TikTok espalhou que o PL censuraria a religião, e o IAB Brasil – associação que representa as empresas de publicidade digital – chegou a fazer campanha declarando que o projeto pode significar o fim da publicidade digital.

O jogo sujo se completou nos últimos dias com o Google colocando um link embaixo da caixa de busca com os dizeres: “O PL das Fake News pode piorar sua internet”, direcionando para um post do blog da gigante com inúmeras críticas ao projeto, além de classificá-la nessa campanha patrocinada por ele mesmo como “PL da Censura”. “Big Techs fazem ação suja contra PL”, resumiu o deputado Orlando Silva. Enquanto o Google respondeu que as alegações “não correspondem à realidade”, o ministro Flávio Dino (Justiça) determinou apuração sobre abusos contra o PL.

Quem quiser saber mais sobre essa ofensiva deve ler o magistral levantamento do NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, produzido sob coordenação da professora Marie Santini.

A Meta, o Google, o Twitter e o TikTok querem, no fundo, empurrar com a barriga a adiar a votação sob o argumento de que o projeto precisa ser mais debatido. Mas o fato é que o texto está maduro, embora previsivelmente não haja consenso no Congresso e nos grupos de interesse envolvidos, as resistências sejam grandes e por isso mesmo o resultado da votação desta terça se mostra incerto.

É essa incerteza que levará a Brasília, por exemplo, quase 40 artistas e produtores, convocados e liderados pela produtora e empresária Paula Lavigne, do 342Artes e da Associação Procure Saber, levando nomes como os músicos Frejat, Seu Jorge, Zélia Duncan, Kleber Lucas e Tim Rescala, as atrizes Letícia Sabatella, Lucélia Santos, Julia Lemmertz e Glória Pires, os atores Daniel Dantas e o escritor Caio Fábio, entre outros.

Nos últimos dias, uma intensa campanha de redes resultou em vídeos gravados por outras dezenas de artistas, entre os quais Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Matheus Nachtergaele, Cláudia Abreu, Jorge Furtado, Bruno Garcia, Bruno Mazzeo, Antônio Calloni, Fernanda Torres, Frejat, Ivan Lins, Elisa Lucinda entre outros. Todos com alertas sobre os ganhos e necessidades trazidos pelo projeto.

Como mostrei em outra coluna, o setor cultural se mobilizou inicialmente devido a uma falsa ideia de que a inclusão de um artigo proposto pelo Ministério da Cultura ao texto do projeto colocaria em rota de colisão a remuneração de jornalistas e artistas. O time da cultura propôs a inclusão do artigo estabelecendo a remuneração para todo conteúdo protegido pela Lei do Direito Autoral. Essa parte do debate foi superada. “A remuneração a todo conteúdo protegido pelo Direito Autoral é a forma de evitarmos que a internet seja uma terra sem lei”, diz Paula Lavigne à coluna. “Essa é a luta de todo o setor cultural, mas é também de todo o Brasil que deseja ver liberdade, responsabilidade e transparência nos meios digitais, razão de existir do projeto.”

Também estarão em Brasília nesta terça diversas organizações que lidam com direitos digitais – muitas delas que integraram a chamada SAD, Sala de Articulação contra a desinformação, que trabalhou pela responsabilização das plataformas digitais na proteção da integridade eleitoral em 2022. Houve intensa articulação nas últimas semanas envolvendo algumas dessas organizações com parlamentares – incluindo nomes como o próprio deputado Orlando Silva.

“Há muito mais consensos do que dissensos em torno do projeto, e mostra o quanto os debates permitem o país avançar agora rumo a uma regulação responsável das plataformas digitais, como forma de domar os poderes absolutistas das gigantes de tecnologia”, sugere Humberto Ribeiro, um dos diretores do Sleeping Giants Brasil, organização que começou como movimento e dedicou esforço especial contra o financiamento, pelas plataformas digitais, do discurso de ódio e das fake news.

Para Ribeiro, o PL2360 será necessário para proteger crianças e adolescentes, evitar atentados a escolas, combater o terrorismo, combater o crime organizar, defender a liberdade de expressão para todos, valorizar a imprensa e os artistas, com direito autoral respeitado pelas plataformas. E fundamental: ajuda a mostrar que o modelo de negócio de monetização de conteúdo desinformativo e com discurso de ódio pelas Big Techs é errado. Simples e complexo assim.

Com a ajuda de algumas dessas organizações, a coluna lista os principais motivos pelos quais o projeto está maduro e trará avanços significativos para o Brasil, para a democracia e para a transparência da internet.

1. É um projeto que ajuda a combater crimes nas redes sociais e institui a responsabilidade solidária das plataformas diante de conteúdos ilícitos publicados por terceiros. A linha de corte do projeto para as plataformas digitais é o que a legislação brasileira define como crime no mundo real. Obriga que as Big Techs atuem para prevenir e mitigar crimes como terrorismo, racismo, pedofilia, violência contra a mulher, crimes contra a democracia. Se até agora elas não podem ser responsabilizadas pelo que publicam e ganham dinheiro com conteúdos de terceiros que os incitam, agora terão o dever de enfrentá-los (artigos 7º e 11).

2. É um projeto de defesa da liberdade de expressão, e não de censura. As Big Techs serão obrigadas a informar ao usuário a razão de seus conteúdos terem sido removidos e permitir que recorram a essas decisões – e com devidos prazos para as respostas. Além disso, anualmente deverão elaborar relatório explicando o volume de conteúdos que removeram, os motivos dessas remoções e avaliar medidas para corrigir falhas na remoção indevida de contas e conteúdos (artigos 7º e 17). A liberdade de expressão é um princípio do projeto (artigo 3º). Isso acaba com a arbitrariedade dos termos e compromissos de cada plataforma – única regra à qual elas se submetem.

3. É um projeto que ajudará a proteger e remunerar todo o conteúdo previsto pela Lei do Direito Autoral, incluindo o jornalístico, o musical e o audiovisual. Caberá às Big Techs remunerar o jornalismo profissional e todo o conteúdo protegido pela Lei do Direito Autoral, incluindo o musical e o audiovisual. Além de exigir transparência no uso de seus algoritmos e bots (artigos 31 e 32).

4. É um projeto que exige transparência das plataformas digitais sobre as regras de sua publicidade. Se aprovada, a lei obriga as plataformas a desenvolverem repositórios de informação sobre as regras de sua publicidade. Hoje esses repositórios existem, mas as plataformas as entregam de forma de desigual, com níveis de transparência por aqui bem diferentes do que fazem no Norte global.

Comentários