"Se a cultura fosse tratada como indústria, seria um de nossos principais produtos de exportação", diz Eduardo Saron

Para o presidente da Fundação Itaú, o Estado não prioriza o setor que empregou 7,4 milhões de brasileiros em 2022 e é preciso criar indicadores confiáveis para construir políticas sólidas de fomento

Eduardo Saron

Flávia Gianini - IstoÉ Dinheiro

A indústria da cultura movimentou R$ 230 bilhões em 2020 no Brasil, o equivalente a 3,11% das riquezas geradas no País. Como comparação, a cifra superou o setor automotivo, que respondeu por 2,1% do PIB e empregou 7% do total de trabalhadores. Esses e outros dados fazem parte de uma plataforma inédita de mensuração da Economia da Cultura e Indústrias Criativas (Ecic) no Brasil, recém-lançada pela Fundação Itaú, que coordena as ações culturais do banco, além dos projetos sociais e de educação. “Quando oferecemos informação de qualidade para políticas públicas e ações do setor privado, estamos alertando que a cultura é uma fonte de riqueza que precisa de mais e melhores políticas, além da consciência da sociedade a respeito do segmento”, afirmou Eduardo Saron. Ele assumiu a presidência da entidade com a missão de gerir mais de R$ 300 milhões em projetos — equivalente à metade do orçamento da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e ao dobro da verba da mesma pasta no Rio de Janeiro.

DINHEIRO — Por que criar um novo indicador da atividade cultural?
EDUARDO SARON — Ver a cultura e a arte ligadas à economia é algo muito recente na história e faltam dados. Havia certo incômodo do setor em ver seu trabalho precificado, tratado como produto que gera um valor específico. Mas nos últimos dez anos, esse incômodo tem sido superado. A pandemia, apesar de toda a tristeza, contribuiu nesse sentido, pois a escassez aumentou a disputa por recursos, forçou a se qualificar. As indústrias criativas precisam de recursos e para isso é preciso gerar evidências. Gerar dados, gerar informações e oferecer elementos para a sociedade tomar suas decisões sobre que prioridades precisam ter na construção das políticas públicas de cultura.

Como o indicador foi construído?
A metodologia foi desenvolvida por um grupo de pesquisadores a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE), da Relação de Informações Sociais (Rais), do Programa de Avaliação Seriada (PAS) e da Pesquisa Anual de Comércio (PAC), além das Tabelas de Recursos e Uso do IBGE (TRU) para contabilização dos impostos e o histórico de prestação de contas da Lei Rouanet. Como algumas bases de dados não foram totalmente atualizadas em relação a 2021 e 2022, o primeiro levantamento do PIB da Cultura só conseguiu determinar o valor da geração de riquezas do setor até 2020.

A maior parte das informações aponta para dados que servem às políticas de Estado. Quais as motivações para o setor privado usar esse novo indicador?
Esse apanhado de dados com informações sobre as indústrias criativas brasileiras pode ser usado por agentes do mercado, pesquisadores e gestores como uma forma de avaliar as tendências de médio prazo, bem como a conjuntura desses setores no Brasil, servindo como uma plataforma de apoio à tomada de decisões e também à identificação de eventuais gargalos que devam ser superados nesse mercado. A plataforma permite filtros por região e estará sendo atualizada permanentemente. Quando o setor se organiza e se mobiliza, também se mobilizam o olhar do empresariado que identifica um campo potencial a ser explorado. Indicadores mostram sobre como se alocam os recursos do setor, quais programas são priorizados, estratégias adotadas — e permitem atração de investidores privados.

Como foi criado o conceito de indústria criativa para a plataforma?
Trabalhadores criativos são aqueles que geram novidades e que contribuem criativamente para a realização de um produto ou serviço. Fazem isso entendendo a demanda e as preferências simbólicas de diferentes nichos de mercado. Por conta de sua atuação peculiar, esses trabalhos ainda não podem ser mecanizados, mesmo com as recentes criações de novas tecnologias.

Quais setores compõem o PIB da Economia Criativa nesse levantamento?
Para a formulação do modelo foram considerados como indústrias criativas os segmentos de moda, atividades artesanais, indústria editorial, cinema, rádio e TV, música, desenvolvimento de software e jogos digitais, serviços de tecnologia da informação dedicados ao campo criativo, arquitetura, publicidade e serviços empresariais, design, artes cênicas, artes visuais, em museus e cuidado com o patrimônio. E o painel de dados constrói um panorama econômico sobre o setor cultural e criativo brasileiro por meio de quatro eixos de análise: Mercado de Trabalho e Empreendimentos; Indicadores Socioeconômicos; Gastos Públicos com Cultura; e Comércio Internacional de Produtos Criativos.

Quais desafios apareceram?
O indicador seria lançado no ano passado, mas resolvemos lançar este ano para usar os microdados de 2022 do IBGE. Caso contrário, o levantamento iria parar em 2019. Outra decisão em relação às dificuldades metodológicas foi à decisão de considerar a série histórica. Mais do que diagnosticar o setor em 2022, nós decidimos olhar a evolução dele desde 2012. Depois foi a vez de consultar os modelos e especialistas internacionais e nacionais. A partir de referências da França, da Inglaterra, da Colômbia e do Chile, nós consultamos os especialistas brasileiros para tropicalizar a metodologia, pois nós temos as nossas especificidades, sazonalidades.

Quais as diferenças?
O Brasil tem uma indústria criativa única. Festas locais que movimentam todo o mercado, por exemplo. Era preciso uma metodologia para capturar toda a intensidade criativa. Nessa hora a gente passa para outro estágio, que é mobilizar os agentes do setor. Reunimos todos os secretários estaduais de Cultura e apresentamos a plataforma e como ela pode ser usada.

Como a sinergia entre setor público e privado pode impactar no desenvolvimento da atividade cultural?
Como é um setor capilarizado é preciso uma sinergia de iniciativas públicas e privadas para gerar valor para o município, para o estado e todo sistema inter-relacionado. Uma carta assinada na reunião com os secretários de Cultura propõe formar uma rede de produção de dados e informação, criar um programa de formação dos especialistas dentro das secretarias para que haja uma lupa em tantos outros projetos, programas, ações que não são capturados pelos levantamentos. Eu não tenho dúvida em afirmar que O PIB da cultura e da indústria criativa é maior do que 3,11% do total. Mas a gente ainda não consegue capturar com mais precisão o impacto, por exemplo, de festas tradicionais, como as de São João. Ou na gastronomia.

Qual é o papel hoje de entidades privadas no sistema cultural do País?
Quem faz política pública é o Estado, mas é fundamental gerar cada vez mais dados, evidências, informação e conhecimento sobre os campos em que atuamos e oferecer esses dados no melhor do espírito público, para fomentar e formar o setor. 

Especificamente no Itaú Cultural, o que é oferecido?
A escola Itaú Cultural oferece mais de 25 cursos, todos gratuitos via internet. Temos pós-graduação e mestrado profissional em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o Instituto Célia Helena, com o Insper e com o Instituto Singularidade. As pós-graduações são completamente gratuitas. Às fundações, não basta apenas oferecer acesso ao conteúdo cultural, precisamos fomentar novos artistas no campo da cultura e democratizar a participação de grupos minorizados. Pensar o Brasil a partir da nossa diversidade e então colocar nossa estrutura a favor desse projeto. O painel da economia criativa permitirá que as pessoas façam seus filtros.

Se a Lei Rouanet é o principal instrumento utilizado pelas empresas interessadas em colocar suas marcas em projetos culturais, por que ela é alvo de tantas críticas?
A Lei Rouanet virou um case da má informação. A lei foi bem pensada em três pilares, sendo que dois nunca foram realmente implementados. O pilar mais conhecido é o mecenato empresarial por meio do imposto de renda. Mas há também o Fundo Nacional de Cultura, que permitiria financiar projetos com menos visibilidade, mas retorno reputacional. Isso foi diminuindo a cada ano depois do auge de recursos em 2010. E os impostos recolhidos com as loterias para o Fundo são transformados em superávit fiscal pelos governos.

Como gostaria de ver o ecossistema do setor cultural no futuro?
Como uma indústria. Se a cultura fosse tratada como indústria, seria um dos principais produtos de exportação nacional, como aconteceu com o cinema americano ou o atual K-pop, na Coreia do Sul. É uma indústria que gera dinheiro e gera valor. No futuro, eu gostaria de ver na internacionalização da cultura brasileira o nosso grande diferencial competitivo. Ver que compreendemos que a cultura é o maior e um dos melhores ativos econômicos para o desenvolvimento do País.

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