‘Novo arcabouço fiscal terá um efeito significativo na dívida pública’, diz Felipe Salto

Para ex-secretário da Fazenda do Estado de SP, regra de gastos proposta por Haddad pode controlar o avanço da dívida em 10 pontos porcentuais do PIB no período de uma década

Felipe Salto

Adriana Fernandes - Estadão

Ex-secretário da Fazenda do Estado de São Paulo e ex-diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, atualmente economista-chefe da corretora Warren Rena, está no grupo dos economistas que avaliam positivamente o projeto de arcabouço fiscal apresentado pelo ministro Fernando Haddad como uma regra de controle efetivo do crescimento dos gastos. Ele fez as contas e diz que a regra pode, no período de uma década, controlar o avanço da dívida pública em 10 pontos porcentuais do Produto Interno Bruto (PIB). Sem a regra, a dívida projetada poderia chegar a mais de 95% do PIB. Com ela, poderá ficar entre 85% e 86% do PIB.

Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista.

O corte de isenções e o combate a privilégios, pautados pelo ministro Haddad, não tiveram abrigo no Congresso nas últimas décadas. Não será difícil enfrentar essa agenda?
Uma andorinha só não faz verão. É necessário de fato um comprometimento do governo, que me parece haver agora. Estamos falando de um governo mais à esquerda, que naturalmente não quer fazer o ajuste fiscal todo centrado do lado do gasto. Não podemos esperar de um governo mais desenvolvimentista um ajuste fiscal feito 100% pelo lado da despesa. E nem o Brasil está preparado para isso, porque a Constituição de 1988 preconiza um gasto rígido, difícil de cortar e crescente. É um feito o ministro Haddad ter entregue um programa fiscal com controle do crescimento do gasto. O arcabouço embute uma coisa que todo mundo pede, mas na hora do vamos ver parece que ninguém quer apoiar.

Como o sr. viu a reação do mercado nos últimos dias em relação ao novo arcabouço fiscal com melhora da Bolsa, câmbio e juros?
O mercado, num primeiro momento, reagiu de maneira cautelosa e até dúbia. Uma parte do mercado avaliou de maneira positiva. Uma parte dos economistas de maneira negativa e até cética e outra de forma positiva. Estou no grupo dos que reagiram, desde o início, de forma positiva. Fazendo as simulações do que poderia ser a regra fiscal, está claro que há, sim, algum tipo de controle de gasto. O mais importante é que o coração da regra é o controle do gasto. O arcabouço tem um segundo eixo, que é uma trajetória de metas de resultado primário. Muitos focaram na análise desse segundo eixo. É um erro.

Por quê?
Mesmo que não se tenha uma trajetória tão otimista para o resultado primário, como a zeragem do déficit em 2024, a mera aplicação da nova regra de gastos, vai produzir um efeito bastante significativo na trajetória da dívida pública. Isso é possível mostrar com as projeções.

De quanto?
O efeito em dez anos, por exemplo, vai ser de até 10 pontos percentuais do PIB. Isso significa que a dívida projetada poderia chegar a mais de 95% do PIB. Na presença da regra, ela vai ficar de 85% a 86% do PIB. Num período de dez anos, isso é bastante. Com a meta de resultado primário (receitas menos despesas sem contar os gastos com juros) complementando, essa trajetória pode ser acelerada. Mas não é verdade, como foi divulgado por alguns estudos, que a regra depende necessariamente de um aumento do lado da arrecadação como se não houvesse amanhã.

Mas há muito ceticismo justamente em relação à capacidade da regra de promover ajuste fiscal.
De um lado, há certo pé atrás com governos mais à esquerda. Isso é preciso ter claro. De outro lado, o governo Dilma teve algumas medidas na área fiscal que foram preocupantes e levaram a uma situação econômica ruim. Esse passado ainda assombra os governos do PT. O novo governo não só tem de mostrar credibilidade com um bom programa fiscal, como também suplantar essa sombra.

Como vai ser essa tramitação no Congresso?
Não compro a tese de que o Congresso vai endurecer qualquer medida fiscal. A tendência do Congresso é aumentar gastos, de tentar fazer mais emendas. Agora, existem algumas lideranças no Congresso que querem ser arvorar no direito de substituir quase uma prerrogativa que é do Executivo. O Executivo está mandando um programa de ajuste fiscal. A tarefa do governo é dar a batalha para que esse programa não seja distorcido e não seja flexibilizado demais. Acho que a pressão vai ser por afrouxar e não por endurecer.

Lideranças do PT, como a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, querem afrouxar.
Se tem uma coisa do PT que eu aprendi, é que o partido segue o lema do José Genoino (ex-presidente do PT e ex-deputado): pluralidade no discurso e unidade na hora da ação. Na hora do vamos ver, o PT inteiro vai voltar a favor do acabou fiscal. Eles podem fazer o debate que quiserem, dar entrevista para quantos jornais quiserem, mas se o presidente Lula disser que eles têm que votar a favor, eles vão voltar.

O que acha da decisão do governo de tirar receitas extraordinárias do cálculo da receita que será usada como referência para o limite de gastos?
Precisaremos analisar com cuidado quais descontos serão feitos. Já havíamos apurado que o indicador de receita líquida seria descontado de receitas atípicas ou voláteis, chamemos assim. Contudo, isso precisará ser bem explicado e detalhado no texto da lei para que a regra possa ser escrutinada e acompanhada de modo adequado. De todo modo, o que está em jogo é se o governo está disposto a ter um crescimento de despesa de 0,6% em termos reais, ano que vem, o que seria o piso da regra, ou se vai precisar de um valor maior. Pelas minhas contas, se o nível de despesas discricionárias (que não são obrigatórias, como investimentos) fosse trazido para o nível de 2022 (cerca de R$ 150 bilhões a R$ 155 bilhões), seria possível observar o piso de alta de 0,6% para a despesa total, mesmo com as obrigatórias crescendo em razão de reajustes salariais, concursos e salário mínimo. Vamos ver.

Há um temor que a meta fiscal fique sendo mudada muitas vezes. Não pode acontecer a mesma coisa com as metas não estando no projeto do arcabouço, mas na LDO?
A LDO sempre funcionou bem como o local para fixar a meta de resultado primário. Esse risco fica minimizado porque tem uma regra de gasto que o governo só conseguiria mudar se mudasse essa lei complementar, que ele mesmo vai apresentar.

Mas o teto de gastos está na Constituição e foi mudado.
Mas com um constrangimento e um custo enormes. Com o mercado precificando mais juros etc. Não é fácil mudar uma regra fiscal. A meta fiscal fixada na LDO tem a novidade de ter banda de 0,25 ponto percentuais do PIB. Se descumprir a meta, tem uma sanção no ano seguinte: a despesa obrigatoriamente terá que crescer menos. Se a meta original não for observada, o governo vai ter que mudar essa trajetória na LDO e vai ter o constrangimento de enfrentar a reação do mercado e de dar todas as explicações. O governo aposta no modelo de ajuste fiscal baseado na receita, mas não sem antes garantir um ajuste mínimo pelo lado do gasto.

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