Comunidade terapêutica contratada pelo governo Tarcísio tem falta de médico e orações

Participação nas rodas de oração é obrigatória; recusa gera advertência e até desligamento do tratamento


Mariana Zylberkan - Folha.com

Usuários de drogas internados pela gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) em uma comunidade terapêutica em São José dos Campos (SP) afirmam que não conseguem ter acesso a médicos e que são obrigados a participar de rodas de orações antes das refeições.

Uma paciente disse ter sido informada que deveria aguardar um mês por uma consulta depois de ter reclamado de sintomas de crise de abstinência. Não há acesso também a medicamentos, com exceção dos prescritos antes da internação. A Folha ouviu três pacientes nas últimas duas semanas.

Segundo vídeo enviado por um deles, os pacientes formam uma roda antes das refeições, e um membro da comunidade terapêutica reza um pai-nosso. Usuários também reclamaram dessa situação.

Há também agradecimentos e pedidos a Deus, sempre relacionados ao uso de drogas e à busca de tratamento. A rotina dos pacientes inclui também sessões de terapia em grupo e individuais.

Os usuários relatam que a participação nas rodas de oração é obrigatória e a recusa se reverte em advertência. Na reincidência, o paciente é desligado do tratamento.

Nos quartos, há três ou quatro beliches e cada cômodo é ocupado por seis pessoas, em média. Uma vez admitido na comunidade terapêutica, cada paciente recebe dois papéis em que são listadas regras de convivência, como manter os quartos arrumados, não levar comida para os cômodos e respeitar os horários de banho, refeições e hora de dormir.

Em nota, a Secretaria estadual de Desenvolvimento Social afirmou que monitora e fiscaliza as comunidades terapêuticas. "Em caso de denúncias, um procedimento de averiguação é instaurado e, se constatada qualquer irregularidade, as medidas administrativas e sancionatórias previstas são aplicadas, podendo chegar à finalização do termo de parceria", informou a pasta.

A diretora da comunidade terapêutica Nova Esperança, Dulcineia Paulino, disse que não é papel da instituição por definição oferecer atendimento médico aos usuários, e sim abrigo a quem quer deixar o vício voluntariamente. "Encaminhados ao sistema de saúde do município e demora um certo tempo para serem atendidos", diz.

Ela também disse que as orações não são obrigatórias e que a comunidade terapêutica não tem vínculo com igrejas. "Seguimos os 12 passos dos Narcóticos Anônimos", diz ela. O tratamento inclui a oração da serenidade e agradecimento à alimentação. "Não existe advertência. Quem não quer participar, é só ficar calado", explica.

A principal ação das comunidades terapêuticas é promover o distanciamento do dependente químico de ambientes onde há uso de drogas. Assim, elas geralmente não fazem o tratamento médico dos usuários.

Além disso, a maioria é ligada a entidades religiosas —segundo levantamento da Folha, 74% das organizações que recebem financiamento federal são de matriz religiosa. Não há levantamento específico sobre as comunidades que recebem verbas estaduais.

Das 58 comunidades terapêuticas atualmente com convênio com o governo paulista, cinco recebem repasses da Secretaria de Saúde e atuam como hospitais psiquiátricos. As demais 53 têm contrato com a Secretaria de Desenvolvimento Social e, portanto, não fornecem atendimento médico aos usuários.

"É uma espécie de abrigo e não funciona como tratamento", diz Maria Angelica Comis, coordenadora do É de Lei, entidade especializada em redução de danos. "Essa política de Estado não abarca as necessidades dos pacientes."

De acordo com o governo estadual, 27 pessoas foram encaminhadas para a comunidade terapêutica Nova Esperança, em São José dos Campos, desde o último dia 11. Nesta data foi inaugurado no centro de São Paulo um novo centro de tratamento para dependência química que é a principal aposta da gestão Tarcísio para lidar com a cracolândia.

É de lá que partem as ambulâncias para levar os usuários à comunidade terapêutica. O governo paga entre R$ 1.600 e R$ 1.700 por mês para cada vaga ocupada por dependente químico.

Segundo dados oficiais, 245 pessoas foram encaminhadas para leitos de desintoxicação ou equipamentos de acolhimento desde a inauguração do centro de tratamento pelo governo estadual. Cerca de 10% desse contingente foi encaminhada para a comunidade terapêutica em São José dos Campos.

As outras opções de encaminhamentos disponíveis no centro de tratamento do Bom Retiro são atendimentos ambulatoriais no Caps (Centro de Atenção Psicossocial), hospitais psiquiátricos e as casas de passagem, em que usuários convivem em esquema de república.

Tarcísio afirmou no início de janeiro que o aumento de internações em comunidades terapêuticas era uma prioridade de sua gestão. Na ocasião, o governador também anunciou o vice Felício Ramuth (PSD) como gestor do programa estadual para dependentes químicos.

Os usuários de drogas que procuram o centro de tratamento no Bom Retiro, porém, relatam demora de até 11 dias para conseguir uma vaga de internação. O prazo foi informado ao mecânico Valdenir, 46, no último dia 13. Ele saiu da triagem com a data em que deveria retornar anotada em um papel. "Vou tentar me manter sóbrio até lá e não desistir", diz ele, que procurou a internação para se livrar do vício em álcool.

Questionada, a Secretaria de Desenvolvimento Social não informou o método científico que embasou a decisão de aumentar as internações em comunidades terapêuticas.

Resposta oficial do Governo do Estado de São Paulo:

O Governo do Estado de São Paulo atua para oferecer acolhimento e tratamento efetivo para as pessoas que lutam contra a dependência química. O atendimento tem início no Hub de Cuidados em Crack e outras Drogas, onde uma equipe especializada, composta por médicos e psiquiatras, analisa o quadro clínico de cada paciente e define a conduta a ser adotada.

É neste momento que os profissionais indicam a necessidade de internação em leitos de desintoxicação ou acolhimento terapêutico nas comunidades terapêuticas. Nessas unidades, após avaliação multidimensional das vulnerabilidades em decorrência do uso de drogas, a pessoa acolhida, com suporte técnico, constrói e busca a execução do Projeto de Vida. Durante todo período de acolhimento terapêutico, o suporte de saúde é realizado pelas equipes do HUB. Em caso de necessidades, os pacientes são encaminhados para a rede pública de saúde.

A fim de garantir a segurança e a qualidade na prestação de serviço, a SEDS monitora e fiscaliza constantemente as comunidades terapêuticas. Em caso de denúncias, um procedimento de averiguação é instaurado e, se constatada qualquer irregularidade, as medidas administrativas e sancionatórias previstas são aplicadas, podendo chegar à finalização do termo de parceria. Todas as unidades contam com o serviço de ouvidoria para o registro de sugestões, denúncias e reclamações pelos acolhidos.

Desde a inauguração do HUB, foram encaminhados entre leitos de desintoxicação e acolhimento social foram 245 pessoas. Destas, 27 pessoas foram para Comunidade Terapêutica Nova Esperança em suas três unidades descentralizadas. O valor pago pelas vagas varia entre R$ 1,6 mil e R$ 1,7 mil.

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