Burocracia como proteção da democracia

Estudo revela as táticas de opressão do governo Bolsonaro sobre a burocracia estatal, que ofereceu importante e eficaz resistência. O poder deve estar sempre sujeito aos limites da lei



Notas & Informações - O Estado de S.Paulo

Movimentos políticos de vocação autoritária, com suas ameaças e a difusão de desinformação, não tensionam apenas as relações com o Judiciário, o Legislativo e a própria sociedade. No exercício do poder não republicano, ocorre um tensionamento com a própria administração pública. O fenômeno foi visto, por exemplo, nos Estados Unidos no governo de Donald Trump. Várias tentativas de Trump para desvirtuar o funcionamento do aparato estatal não foram adiante porque, em vários momentos, funcionários públicos não se dispuseram a atuar fora dos limites da lei.

O artigo A resposta da burocracia ao contexto de retrocesso democrático, publicado recentemente na Revista Brasileira de Ciência Política, analisa o caso do Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro. De autoria da professora Gabriela Lotta (FGV-SP) e de mais cinco pesquisadores, o estudo baseia-se em 165 entrevistas feitas com funcionários públicos de médio escalão, entre dezembro de 2020 e julho de 2021, em 15 órgãos diferentes das áreas social, econômica, ambiental e de planejamento do governo federal. Os autores descrevem a ocorrência de estratégias de opressão, por parte do poder político, e de resistência, por parte da burocracia, com um “processo de aprendizagem” mútua ao longo do tempo.

A respeito da “relação contenciosa” do governo Bolsonaro com a burocracia pública, o estudo relata três modalidades de enfrentamento. Houve tentativas de (i) ameaçar os princípios constitucionais, (ii) reduzir a transparência e mecanismos de controle e (iii) enfraquecer a legalidade das ações realizadas pelo poder público. Segundo o estudo, o funcionalismo articulou-se, com ações individuais e coletivas, formais e informais, para resistir a essas investidas, evitando, assim, um desvirtuamento ainda maior da máquina pública. No entanto, essa resistência suscitou novas táticas de opressão.

“Ao longo do tempo, o governo aprendeu a operar os procedimentos, a usá-los e a mudar as formas de atacar a burocracia”, diz o estudo. Em concreto, entenderam que “os instrumentos formais são mais danosos e custosos para os burocratas”. Com o objetivo de perseguir, houve, por exemplo, abertura de processo administrativo disciplinar contra funcionário sob acusações infundadas, o que acarreta custos emocionais e financeiros. Ainda que esteja dirigido a uma pessoa em concreto, esse tipo de opressão tem “efeito multiplicador em termos de criação de um ambiente de medo coletivo, no qual os demais servidores ficam receosos de serem os próximos”.

O artigo destaca que, “com o passar do tempo, os custos de reação aumentaram para os burocratas, e alguns deles perderam parte de sua capacidade de reagir, sendo silenciados, abandonando a resistência ou mesmo a organização à qual pertenciam”. Isso ajuda a explicar a maior capacidade de desmonte institucional do governo ao longo do tempo. A resistência da burocracia é importante e eficaz, mas tem seus limites.

Uma forma de burlar a resistência da burocracia utilizada pelo governo Bolsonaro foi a militarização da máquina pública, com a substituição de cargos comissionados por membros das Forças Armadas e da Polícia Militar. Uma concepção de obediência militar desalinhada com os requisitos legais, indiferente aos aspectos técnicos e fundada estritamente na submissão hierárquica pode ser imensamente destrutiva no poder civil.

O estudo foca na dinâmica de opressão e resistência entre políticos e burocratas, sem a pretensão de analisar suas consequências sobre o Estado e a sociedade – o que é um vasto e necessário campo de estudo. De toda forma, o artigo joga luzes sobre a importância de fortalecer os mecanismos internos da administração pública, na proteção da legalidade da ação estatal e dos direitos dos servidores.

A empreitada de resistência é tarefa própria da República. O exercício do poder deve sempre estar submetido aos limites e à finalidade da lei. Fundamental para o desenho e a implantação de políticas públicas efetivas, a burocracia é também essencial na defesa do Estado Democrático de Direito.

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