Carcomendo a democracia

Ao pretender aumentar número de cadeiras do Supremo para apinhá-lo de ministros que lhe sejam ‘leais’, Bolsonaro quer desidratar o Poder que ainda freia seus devaneios autoritários


Editorial - O Estado de S.Paulo 

O presidente Jair Bolsonaro cogita apoiar mudanças na Constituição para aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), em indisfarçável tentativa de estabelecer naquela corte, caso ele seja reeleito, uma maioria capaz de tornar “constitucional” toda e qualquer iniciativa do governo. 

A ideia foi defendida pelo vice-presidente Hamilton Mourão, senador eleito pelo Rio Grande do Sul, e o presidente, quando questionado sobre o assunto, não desmentiu. Antes, confirmou que a discussão do tema é uma forma de pressão sobre o STF, tido e havido pelo bolsonarismo como grande foco de oposição ao governo – o presidente já chegou a dizer que o Supremo “interfere demais e atrapalha muito o destino do País”. Se o Supremo “baixar um pouco a temperatura”, disse Bolsonaro, o assunto poderá ser retirado da pauta bolsonarista em um eventual segundo mandato. Onde se lê “baixar a temperatura”, leia-se render-se às vontades golpistas de Bolsonaro. 

A reforma do Judiciário é uma pauta relevantíssima, que este jornal inúmeras vezes defendeu. No entanto, o que Bolsonaro pretende não é reforma, e sim a desidratação de um dos freios constitucionais ao Poder Executivo – e talvez se torne o único, dado que o sucesso bolsonarista nas urnas deu ao presidente, caso se reeleja, uma confortável base no Congresso. Quando Bolsonaro diz que, se ganhar um novo mandato, “vamos trazer essa minoria que pensa que pode muito para dentro das quatro linhas da Constituição”, fica clara sua disposição de intimidar os ministros do Supremo que ousarem contrariá-lo. 

Sua vontade é pública: Bolsonaro chegou a encaminhar um pedido de impeachment contra o ministro Alexandre de Moraes, um de seus principais desafetos no Supremo, e o processo só não foi adiante porque o comando do Senado não permitiu. Na próxima legislatura, com ampla presença bolsonarista no Senado, essa barreira possivelmente deixará de existir. Restariam poucos obstáculos para o projeto autocrático de Bolsonaro. 

Seja qual for o cargo que ocupam, os políticos precisam entender que, no Estado Democrático de Direito, vigora o princípio da separação de Poderes. O Judiciário é independente. Nem o Executivo nem o Legislativo mandam na Justiça. A discordância de uma orientação do Supremo não é resolvida com a ameaça de aumentar o número de ministros do Supremo e, assim, obter um novo posicionamento do tribunal. Quem age assim afronta a Constituição de 1988 que, ao dispor sobre as cláusulas pétreas, estabelece que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos Poderes”. 

A ameaça é muito grave, envolvendo aspecto central do funcionamento do Estado Democrático de Direito. Competência do Judiciário, a aplicação da Constituição não pode estar sujeita a pressões do Executivo ou do Legislativo. 

Em função do princípio da separação dos Poderes, uma maioria parlamentar, circunstancial, deve ser rigorosamente incapaz para alterar uma orientação jurisprudencial. No entanto, o bolsonarismo afirma com todas as letras que, motivado pela votação nas urnas e a pretexto de acabar com o “ativismo judicial”, pretende “enquadrar” o STF, nas palavras do líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), em entrevista à GloboNews. 

Para “enquadrar” o Supremo, Bolsonaro planeja nomear somente ministros que respeitem o critério da “confiança de lealdade mútua”. Ou seja, devem trabalhar não em defesa da Constituição, mas em favor das pautas de interesse do governo e, em particular, do presidente. Com isso, o Supremo passa a ser uma extensão do Poder Executivo. 

Não à toa, o regime militar, quando precisou “enquadrar” o Supremo, tratou de aumentar o número de ministros. E também não à toa, foi com esse mesmo princípio que o chavismo subjugou o Judiciário e instalou de vez sua ditadura na Venezuela. Bolsonaro, desde sempre inconformado com o fim da ditadura militar, sabe muito bem o que está fazendo – e é preciso urgentemente que os brasileiros que prezam a democracia saibam também.

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