Médicos usam informações falsas para criticar vacinas no Senado

Debate foi proposto pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE), que ganhou destaque por suas posições negacionistas na CPI


O senador Eduardo Girão (Podemos-CE) propôs o debate sobre a Covid-19 no Senado

Carol Macário e Samuel Costa - Folha.com
AGÊNCIA LUPA

O senador Eduardo Girão (Podemos-CE) presidiu, na última segunda-feira (14), uma sessão temática no plenário do Senado sobre a eficiência do certificado de vacinação, que ficou conhecido como passaporte sanitário. Na abertura do evento, o parlamentar disse que tinha o compromisso em "ouvir os dois lados" e ressaltou que buscou convidar especialistas com análises diversas sobre a imunização. Entre os nove médicos e juristas ouvidos, no entanto, apenas dois não discursaram contra a vacinação da Covid-19 ou contra as medidas não farmacológicas de prevenção (como uso de máscara e isolamento social).

Além disso, foram incluídos como especialistas na sessão seis parlamentares governistas também críticos a medidas de combate à pandemia: Marcos Rogério (PL-RO), Carlos Portinho (PL-RJ), Bia Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP), Janaína Paschoal (PSL-SP) e Priscila Costa (PSC-CE). A Lupa acompanhou a sessão e checou algumas declarações feitas pelos médicos convidados. Confira:

"Um estudo feito pela própria Fiocruz revela que, após seis meses de administração da vacina Coronavac, o risco de contrair Covid aumenta, ao invés de diminuir — ele aumenta"

Paulo Porto
Médico neurologista, em sessão plenária do Senado no dia 14 de fevereiro de 2022

FALSO

Ao contrário do que Paulo Porto afirma, o estudo da Fiocruz mostrou que, após seis meses de administração, a eficácia da Coronavac diminui em relação aos meses iniciais —o que não é incomum e ocorre também com outras vacinas contra a Covid-19 e outras doenças. Ou seja, o risco de uma pessoa imunizada contrair Covid-19 não se torna maior na comparação com não vacinados. A pesquisa destaca ainda que a eficiência da Coronavac contra as formas moderada e grave da doença foi demonstrada em ensaios clínicos e observacionais.

Os próprios cientistas da Fiocruz ressaltam que os resultados da análise são imprecisos, porque a população acompanhada pelo estudo era composta majoritariamente por profissionais da saúde. Além disso, destacam que não houve a comparação de dados sobre a taxa de infecção entre pessoas vacinadas e não vacinadas.

Outras variáveis também podem ter enviesado o resultado do estudo, como uma maior presença de pessoas integrantes de grupos de risco na população vacinada à época da realização das análises (17 de janeiro de 2021 a 30 de setembro de 2021). O diagnóstico precário dos casos também dificultou a identificação das variantes do vírus (no período em questão, já circulavam no Brasil a delta e gama), que têm diferentes taxas de transmissão e de infecção. Segundo o MedRxiv, a pesquisa ainda não foi revisada por pares.

O médico foi procurado pela Lupa, mas não respondeu até a publicação da checagem.


"Os números de Israel podem parecer paradoxais aos senhores. Como que um país com mais de 30% de quarta dose avança com casos inúmeros e letalidades maiores do que as dos anos de 2020 ou 2021? Teria que se entender esses números como: mais casos, mas menos óbitos (...)"

Roberta Lacerda
Médica infectologista integrante da Associação Médica do Rio Grande do Norte (AMRN), em sessão plenária do Senado no dia 14 de fevereiro de 2022

FALSO

Até 15 de fevereiro, mais de 699 mil pessoas receberam a quarta dose da vacina contra a Covid-19 em Israel, o que representa pouco mais de 7,5% da população total do país —e não 30%, como afirmou a médica. Além disso, não é verdade que a taxa de letalidade (número de mortes em relação ao número de casos da doença) seja maior no país em comparação a 2020 e a 2021. Em abril de 2020, época da primeira grande onda da doença em Israel, esse índice era de 1,4%.

Em fevereiro de 2021, a taxa de letalidade baixou para 0,7%. Na última atualização do repositório de dados sobre Covid-19 da Universidade Johns Hopkins, em 15 de fevereiro, esse índice estava em 0,3% —um dos mais baixos do mundo, atrás apenas de países como Noruega (0,1%) e Dinamarca (0,2%), entre outros.

Vale pontuar que, embora no começo de fevereiro deste ano o país tenha registrado um pico de mortes ligeiramente maior do que registrado no mesmo período de 2021, a maior parte dos óbitos, segundo dados do Ministério da Saúde do país, ocorreu entre pessoas não vacinadas ou com esquema vacinal incompleto —tanto no grupo de até 60 anos quanto em idosos a partir dessa idade. Até o momento, 67,5% da população total de Israel está totalmente vacinada, ou seja, com pelo menos duas doses.

Em janeiro, após quase um mês desde que os primeiros israelenses do grupo de risco receberam o reforço, o governo concluiu que a quarta dose dobrou a resistência contra a infecção em pessoas com mais de 60 anos em comparação àqueles que receberam apenas três doses do imunizante.

Em 7 de fevereiro, o jornal local Haaretz publicou que a população com mais de 60 anos que não foi vacinada ou foi apenas parcialmente vacinada contra a Covid-19 morreu em "números significativamente maiores" em janeiro do que a vacinada.

Roberta Lacerda foi procurada pela Lupa, mas não respondeu até a publicação da checagem.


"O Japão mostrou que [a proteína Spike] acumulava nos ovários. Sabemos que as nanopartículas, as PEGs, que têm em volta da mRNA, da Pfizer, acumulam nos ovários. Elas são extremamente tóxicas e nunca foram usadas em seres humanos"

José Augusto Nasser
Professor do curso de pós-graduação em Neurociências da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em sessão plenária do Senado no dia 14 de fevereiro de 2022

FALSO

O médico José Augusto Nasser refere-se a um documento apresentado pela Pfizer à Agência para Produtos farmacêuticos e Equipamentos Médicos (em tradução livre) do Japão, que, desde o ano passado, vem sendo usado como "prova" da suposta toxicidade da proteína Spike.

Como a Lupa já verificou no passado, o relatório não tem relação alguma com a proteína. Trata-se, na verdade, de um estudo sobre o trajeto das nanopartículas lipídicas no corpo. A conclusão é que não há nenhuma anormalidade.

As vacinas de mRNA são compostas de um fragmento do RNA do vírus "envelopado" por uma capa microscópica de gordura —nome pelo qual os lipídios são mais popularmente conhecidos. Dentro do organismo, essa camada se dissolve e o RNA viral interage com os ribossomos das células —e não com o núcleo— para produzir proteínas Spike, uma parte específica do vírus. Essas proteínas simulam uma infecção por Covid-19, o que ajuda a "treinar" as defesas do corpo contra a doença.

O tal "estudo japonês" é, na verdade, um estudo de farmacocinética apresentado pela própria Pfizer às autoridades japonesas. Ele mostra o trajeto que essas partículas lipídicas fizeram no corpo de ratos.

No estudo, o mRNA foi substituído por uma partícula radioativa, usada para fins de detecção —ou seja, os ratos nem sequer produziram proteína Spike. Após 48 horas, a maior parte das partículas se concentrava no local de injeção e no fígado. As concentrações são compatíveis com o que era esperado inicialmente. Vale pontuar, ainda, que as doses utilizadas eram significativamente mais concentradas do que as das vacinas usadas em humanos.

Não há evidências de que a proteína Spike seja tóxica. Em entrevista à Lupa, Alexandre Naime Barbosa, chefe da Infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), disse que não foi observado durante um ano de desenvolvimento da vacina, tampouco da sua aplicação em larga escala na população, nenhum efeito adverso que comprovasse a toxicidade da proteína. "As vacinas da Pfizer e da Moderna têm registrado alguns eventos raros —raríssimos, eu diria—, potencialmente graves, mas nada relacionado à toxicidade da proteína Spike do Sars-CoV-2", explica o infectologista.

Procurado pela Lupa, José Augusto Nasser informou, por e-mail, que as fontes de suas suas afirmações foram entregues ao Senado e que os artigos citados "estão à disposição de cientistas que tenham capacidade de entendimento". O médico disse ainda que suas manifestações serão, a partir de agora, apenas diante de "um especialista com a mesma formação que a minha ou superior que me conteste com dados científicos".


"Quando eu chego e abro o Vaers de ontem e vejo 23.149 mortes, com 1.088.000 pacientes com efeitos adversos graves (...)"

José Augusto Nasser
Professor do curso de pós-graduação em Neurociências da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em sessão plenária do Senado no dia 14 de fevereiro de 2022

FALSO

A informação analisada pela Lupa é falsa. A captura de tela usada por Nasser é de uma plataforma que sistematiza dados do CDC (Center for Diseases Control and Prevention) e do FDA (Food and Drugs Administration). No entanto, os dados apresentados não podem ser usados para indicar a causa exata dos eventos adversos relatados. Isso porque as informações são apenas de relatos que ainda serão investigados e, portanto, não têm a causalidade identificada. Dessa forma, mesmo que o dado sobre o número de mortes exista, não é possível associá-lo aos imunizantes contra a Covid-19.

A própria organização indica na plataforma que os dados não podem ser utilizados como prova da causa dos eventos adversos. Na página do CDC também há um texto indicando que "[as informações do] Vaers por si só não podem ser usadas para determinar se uma vacina causou ou contribuiu para um evento adverso ou doença". O mesmo ocorre na página do FDA.

Os dados apresentados por esse tipo de plataforma são levantados a partir de notificações enviadas por cidadãos comuns, profissionais de saúde, fabricantes dos imunizantes e qualquer pessoa ou instituição que tenha informações sobre possíveis eventos adversos observados após a vacinação.

Esse protocolo faz parte da política de farmacovigilância, desempenhado pelas autoridades sanitárias no acompanhamento dos produtos aprovados para uso.


"Não tem diferença de transmissibilidade entre não vacinados e vacinados"

Francisco Cardoso
Especialista em Infectologia pelo Instituto Emílio Ribas e diretor-presidente da Associação Nacional dos Médicos Peritos da Previdência Social (ANMP), em sessão plenária do Senado no dia 14 de fevereiro de 2022

AINDA É CEDO PARA DIZER

Ainda é cedo para dizer que não há diferença na transmissibilidade do coronavírus em pessoas vacinadas e não vacinadas. Há diversas publicações que indicam que a transmissão é menor entre grupos de indivíduos imunizados. No entanto, existe divergência quanto à escala da eficácia das vacinas na redução da transmissão. Os estudos analisados pela Lupa sinalizam para a dificuldade de identificação dos contatos de propagação do vírus e apontam variáveis que interferem nos resultados, como nível de isolamento social, respeito às medidas não farmacológicas e emergência de novas variantes.

Uma pesquisa publicada no New England Journal of Medicine traz dados que sugerem que a transmissão do vírus é menor em grupos de pessoas vacinadas. A pesquisa acompanhou 92.470 domicílios de profissionais de saúde da Escócia. Foi observado que a taxa de transmissão da doença nas famílias foi de 9,40 casos por 100 pessoas-ano antes de os profissionais de saúde receberem a primeira dose da vacina. A taxa caiu para 5,93 casos por 100 pessoas-ano, depois da primeira dose; e para 2,98 casos por 100 pessoas-ano, após a segunda.

O estudo, porém, sinaliza que os dados ainda são imprecisos. Isso porque a transmissão para as pessoas acompanhadas na análise não se deu somente através dos profissionais de saúde, mas também por outras vias de contato. Além disso, há de se considerar a emergência de novas variantes —como a delta ou a ômicron— que têm maior capacidade de transmissão.

Outra pesquisa do Reino Unido, publicada na The Lancet, constatou que a diferença da transmissibilidade do vírus entre grupos de pessoas vacinadas e não vacinadas, no contexto da emergência da variante delta, é mínima. Os cientistas, porém, destacam que as vacinas foram eficazes na prevenção do desenvolvimento da doença e na redução do tempo de infecção, mesmo com o surgimento da variante delta.

Já um estudo realizado na Holanda apontou que a eficácia da vacina contra a transmissão para pessoas no mesmo domicílio foi de 71%, considerados os indivíduos totalmente vacinados (com duas doses). A taxa, no entanto, caiu para 22% quando analisados os números da transmissão para pessoas próximas, mas que não vivem no mesmo ambiente doméstico.

Procurado pela Lupa, Francisco Cardoso respondeu, por e-mail, que sua afirmação "encaixa no atual estado da arte do conhecimento sobre o tema, uma vez que existem estudos divergentes e ainda não temos estudos definitivos que comprovem de forma inquestionável que o vacinado transmite menos que o não vacinado". O médico também afirmou que existem estudos que "comparam a carga viral no nariz do vacinado versus não vacinado com resultados díspares, portanto até que se prove o contrário, não há comprovação de que haja diminuição". Cardoso ainda alegou que a etiqueta indicada pela reportagem "tem embasamento tanto para quem afirma uma coisa ou o oposto".


"As pessoas que não foram vacinadas, mas que tiveram a infecção, têm 7, 15, até 36 vezes menos risco de adquirir Covid do que aquelas que não tiveram a doença e foram dupla ou triplamente vacinadas"

Roberta Lacerda
Médica infectologista integrante da Associação Médica do Rio Grande do Norte (AMRN), em sessão plenária do Senado no dia 14 de fevereiro de 2022


INSUSTENTÁVEL

Embora as pessoas que tiveram Covid-19 desenvolvam uma proteção natural contra novas infecções, não é possível afirmar que essa proteção é maior ou mais duradoura do que a oferecida pelos imunizantes. Especialistas convergem no entendimento de que as vacinas são a melhor estratégia porque protegem de formas graves da doença.

Isso porque o argumento de apostar apenas na imunidade adquirida naturalmente, ou seja, após a infecção com o Sars-CoV-2, não leva em consideração a necessidade de se sobreviver a uma doença que pode levar à hospitalização, sequelas e até mesmo ao óbito.

Em uma revisão de estudos científicos sobre a imunidade natural contra a Covid-19, feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS), especialistas concluíram que a força e a duração da resposta imune ao Sars-CoV-2 ainda não foram totalmente elucidadas. Além disso, os dados até o momento sugerem que a proteção pode variar de acordo com a idade e a gravidade da infecção. "Na maioria das pessoas, a resposta imune permanece robusta e protege contra a reinfecção por pelo menos seis a oito meses após a infecção", diz o documento.

Como já mostrado pela Lupa, um estudo publicado em janeiro deste ano pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos sobre imunidade natural em comparação à proteção oferecida pelas vacinas mostrou que quem já tinha sido infectado de fato estava "mais protegido" contra a variante delta do novo coronavírus. Os próprios autores, contudo, ressaltaram que depender apenas da infecção como estratégia não é indicado em razão do maior risco —​para não vacinados— de hospitalização, impactos de longo prazo e morte se comparado às pessoas vacinadas. Além disso, o estudo foi realizado antes da ampla circulação da variante ômicron e antes de a maioria das pessoas terem recebido doses adicionais ou de reforço.

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