Entrevista do prefeito de São Paulo, Bruno Covas, ao jornal O GLOBO



'Imagine lidar com milhares de mortes em SP, passando por um tratamento oncológico e receber a notícia que testei positivo', diz Covas sobre Covid-19

Prefeito de São Paulo afirma que vírus jogou luz sobre a desigualdade na cidade


Cleide Carvalho - O Globo

O prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), relatou ao GLOBO a apreensão ao receber o diagnóstico de teste positivo para o coronavírus, no dia 13 de junho. Naquela semana, a cidade de São Paulo já registrava 5.599 mortos pela doença e a situação no município parecia longe de se estabilizar.

— Mas não tive nenhum sintoma. Fiquei duas semanas em casa, em isolamento. Não tive nenhuma dor, tosse, dor de garganta, febre, dor para respirar, perda de olfato ou paladar. O fato de nunca ter sentido nada diminuiu muito a angústia — disse o mandatário.

No cargo desde 2018, Covas afirma que sempre soube o atendimento era melhor na rede privada de saúde, mas que não conhecia os números de UTI à disposição do SUS e da rede privada. Para ele, a discrepância assusta:

— A população classe E tem três vezes mais chance de pegar o vírus do que a população classe A. É um problema habitacional, de saneamento, é um problema cultural. O vírus jogou luz sobre a desigualdade na cidade.

ENTREVISTA 

O senhor está em tratamento de câncer e teve Covid-19. Como foi receber a notícia?

Eu havia testado negativo quatro vezes, todas elas por ter tido contato com alguém que havia testado positivo. Na quinta vez não foi diferente. Um assessor testou positivo e resolvi testar. Foi quando descobri que eu também tinha contraído o vírus. Mas não tive nenhum sintoma. Fiquei duas semanas em casa, em isolamento. Não tive nenhuma dor, tosse, dor de garganta, febre, dor para respirar, perda de olfato ou paladar.

Ficou angustiado com o diagnóstico?

Claro, imagine eu lidando com milhares de mortes na cidade de São paulo, passando por um tratamento oncológico, ainda receber a notícia que testei positivo. É claro que causou uma apreensão. O fato de nunca ter sentido nada diminuiu muito a angústia. Todo dia conversava com meu médico, o David Uip. Ele também teve Covid no início, mas sentiu mais os efeitos da doença. Fiquei tomando azitromicina, que é antibiótico. E não tive nenhuma dor. Ele disse que entre o quinto e o novo dia é a fase mais complicada. Então não precisei esperar até o final aflito. Passou o nono dia e fiquei mais tranquilo.

Para quem o senhor contou primeiro sobre a Covid-19?

Foi para o meu médico. Depois para minha ex-esposa, mãe do meu filho. Não consegui falar com ele. Depois para minha mãe e meu irmão.

O senhor acha que se expôs demais?

É impossível saber em que momento efetivamente peguei. Se foi no elevador, dentro de casa, numa reunião ou numa visita. É difícil avaliar.

Desde que descobriu o câncer, passando pela Covid, qual foi o pior momento, o pior dia até hoje?

O pior dia foi o primeiro, quando tive a notícia (do câncer). É como bater num muro andando a 120 km por hora. A notícia pega totalmente desprevenido. De longe, foi o pior.

O senhor pensou em se afastar do cargo, desistir da candidatura?

Se os médicos recomendassem, sim. Mas em nenhum momento recomendaram. Muito pelo contrário, até me incentivaram a continuar com a cabeça ocupada.

A quimioterapia tem efeitos.

Você sente fadiga, sente dificuldade. Mas os médicos sempre disseram: "Não somos nós que vamos dizer para você se você vai trabalhar uma, duas, quatro ou seis horas por dia. É o seu corpo que vai dizer". Assim fui fazendo. Alguns dias tive de restringir a agenda a cinco, seis horas de trabalho. Fui tocando até o limite do meu corpo. Mas não houve necessidade de parar por uma semana, três ou quatro dias. Sempre tive disposição e estava aqui trabalhando. A única restrição, durante o tratamento quimioterápico, com a imunidade baixa, foi não fazer agenda externa. Durante esse período, de outubro até o início de fevereiro, não fiz. Trabalhava dentro da Prefeitura ou virtualmente.

Mas e os cuidados durante a pandemia?

Em fevereiro eu comecei a imunoterapia e no fim do mês já estava com a imunidade em níveis normais. Os médicos me liberaram para voltar a ter agenda externa e, em 15 dias, veio a pandemia. Ai deixei, por esse outro motivo, de ter agenda externa, mas durante o período de pandemia nunca estive imunodeprimido, no grupo de risco do coronavírus.

O senhor fez agenda externa.

Mantive a ida ao Palácio dos Bandeirantes, visita a equipamentos ainda na fase de construção. Mas não eventos, agenda externa com aglomeração. Imagine pedir para as pessoas ficarem em casa e fazer eventos para ter aglomeração.

Como tem sido o enfrentamento com os bolsonaristas, que têm visão oposta ao combate à pandemia?

É natural. Na democracia a gente tem de enfrentar pensamentos diferentes do nosso. O que me dá tranquilidade é que aqui (na Prefeitura) tomamos decisões lastreadas e aprovadas pela Vigilância Sanitária, pela área de saúde do município. Existem posicionamentos contrários, mas a gente se sente apoiado e embasado pela equipe.

Como vê o relacionamento com o governo do estado e os municípios vizinhos, colados a São Paulo? Em algum momento discordou do governador ?

Esse é um dos problemas de não ter tido coordenação nacional durante a pandemia. O sistema nacional de Vigilância Sanitária foi pensado no governo federal dando as grandes diretrizes, o governo do estado adaptando as necessidades locais e os municípios implementando. A partir do momento em que deixamos de ter coordenação, cada estado e município acabou atuando da forma que desejou. O que faltou foi coordenação.

O estado não teve essa coordenação entre os municípios da Grande São Paulo?

De alguma forma sim. A partir do momento em que teve o Plano São Paulo, que estabeleceu em que fase o município está, o que pode ou não fazer em cada fase, passou a ter uma coordenação maior. Antes deste plano acabava tendo atitudes diferentes entre as prefeituras.

Em algum momento o senhor discordou do plano?

Não se trata de discordar, O estado toma decisões baseado em números que valem para todo o estado. A Prefeitura toma decisões com base na realidade local. Às vezes tem que compatibilizar as duas visões. Vamos pegar a reabertura dos restaurantes. Na reabertura, o estado resolveu limitar o funcionamento até 17 horas, podendo atender na área externa. Na cidade de São Paulo, por entender que é muito mais difícil fiscalizar na parte externa e não ter calçadas largas na cidade, achamos melhor fazer na área interna, até 22 horas. A acabamos compatibilizando, tendo como regra o mais restritivo. Então o funcionamento ficou até 17 horas, apenas na parte interna. Não é uma visão diferente de mundo. O estado olha a realidade de Rosana, no Pontal do Paranapanema, a Bananal, na divisa com o Rio. A gente olha a realidade local.

O que o senhor aprendeu na pandemia e que não sabia sobre a cidade de São Paulo?

Tem alguns números que a gente acabou aprendendo. Conhecia, mas não tão profundamente. No início do ano a cidade tinha 507 leitos de UTI para 60% da população que é SUS dependente. Então 7,5 milhões de paulistanos e paulistanas contavam com 507 leitos. Os outros 40% da população,. que tem condição de ter plano de saúde ou pagar hospital privado têm à disposição mais de 4 mil leitos de UTI. Sempre soube que havia um atendimento melhor na rede privada, mas o número é muito assombroso. Assusta demais. É uma discrepância muito grande.

Isso altera sua forma de pensar a cidade?

Sempre entendi que o papel do setor público é reduzir desigualdades. Não conhecia tão profundamente este dado específico. Com a pandemia, acrescentamos mais 1.340 leitos de UTI, não deixamos ninguém sem atendimento na cidade de São Paulo. Não é por acaso que o vírus é muito mais letal na periferia. A população classe E tem três vezes mais chance de pegar o vírus do que a população classe A. É um problema habitacional, de saneamento, é um problema cultural. O vírus jogou luz sobre a desigualdade na cidade.

E ela é maior do que o senhor imaginava.

É maior do que muitas pessoas imaginavam. Muitas pessoas, em especial as que são de fora da cidade, acham que São Paulo é "as mil maravilhas". Acham que aqui todo mundo é rico e não tem problema social. Quem conhece sabe que a realidade dos Jardins é bem diferente da Cidade Tiradentes.

Como vê São Paulo ao fim da pandemia?

Hoje já estamos na fase três da flexibilização apresentada pelo estado, caminhando para a fase quatro. Atingimos um pico de número de mortes na semana de 22 de maio e a gente vem reduzindo isso há sete semanas consecutivas. Descemos de 800 mortes e, agora, voltamos a 300 mortes por semana, a mesma que tínhamos no começo de abril. Para a cidade fica o aprendizado. Primeiro na questão cultural, de práticas de higiene, que a gente não tinha. Víamos cenas de países asiáticos, da população usando máscaras, e achávamos que isso nunca iria acontecer na cidade de São Paulo, no Brasil. Fica essa lição de cuidados com a saúde, com a higiene, de não tossir, espirrar na frente dos outros. O próprio teletrabalho deve permanecer, ainda que não 100% da forma que temos na pandemia.

O que pode melhorar na cidade com essa mudança?

A partir do momento em que as pessoas trabalham mais em casa, temos melhoria na qualidade do ar, no trânsito. São efeitos rápidos que a gente percebeu em abril e maio na cidade como um todo. Também a mobilidade. Até mesmo alterar o horário de trabalho, para que nem todos entrem às 9h e saiam às 5 da tarde, para evitar os picos da manhã e da tarde. Mostra que são medidas possíveis de serem adotadas.

O senhor acha que a alteração de horários pode ser mantida?

Espero que sim, que possa ser uma das lições positivas da pandemia. Fizemos isso com o comércio de rua, shoppings populares e os outros shoppings. Quem sabe isso possa ser mantido para evitar aglomeração na parte da manhã e no fim da tarde.

O PSDB teve más notícias este mês. O senador José Serra e o ex-governador Geraldo Alckmin enfrentam denúncias, investigações. Como isso afeta seu futuro político?

Acho perfeitamente plausível, dentro da democracia, que as pessoas tenham que se explicar, que as instituições continuem a funcionar. Tenho certeza e convicção que tanto o senador José Serra quanto o ex-governador Geraldo Alckmin vão provar sua inocência. O que é ruim é essa condenação prévia. Primeiro que uma (pessoa) nem foi transformada em ré. O ex-governador foi indiciado e agora passa a ser investigado pelo Ministério Público. Nenhum problema que isso aconteça. Os dois têm uma contribuição dada a São Paulo e ao Brasil muito grande. São pessoas que conheço de longa data e que, tenho certeza, vão conseguir provar sua inocência.

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