Boiada normativa


Governo aproveita pandemia para mudar leis ambientais, mas destruição é indisfarçável

Vídeo de reunião ministerial: Salles reforça fala sobre "passar a ...
O presidente Jair Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles

Folha de S.Paulo

Dentre as áreas do governo mais visadas pela pauta ideológica do bolsonarismo, foi sem dúvida no meio ambiente que se produziram estragos com mais método.

À diferença de nomes como Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) e Abraham Weintraub (ex-Educação), Ricardo Salles não é um neófito falastrão, um sectário ignorante ou um adepto de teses paranoicas.

Dispõe de discurso articulado, conhecimento da máquina pública, alguma experiência política e articulação com setores empresariais —atributos raros na administração de Jair Bolsonaro.

Essa distinção se fez notar com clareza no vídeo que registrou a fatídica e reunião ministerial de 22 de abril e se tornou conhecido com o escândalo da queda de Sergio Moro da pasta da Justiça.

Na gravação podem-se ver Weintraub a choramingar sobre a vida em Brasília e defender a prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal; Damares a levantar teorias a respeito da contaminação criminosa de povos indígenas; Araújo a listar o Brasil na meia dúzia de países capazes de definir a nova ordem mundial pós-Covid-19.

Já Salles apresentou um plano objetivo, ainda que sinistro, para seu setor: aproveitar as atenções gerais voltadas à pandemia e avançar em reformas infralegais —que não dependem do Congresso— do controle ambiental que, em outras circunstâncias, despertariam reação contrária da opinião pública ou do Ministério Público.

“Ir passando a boiada”, nas palavras do ministro, não era bravata. Levantamento realizado pela Folha, em parceria com o Instituto Talanoa, aponta que 195 atos referentes à política ambiental foram publicados no Diário Oficial de março a maio, ante apenas 16 no período correspondente de 2019.

O episódio é ilustrativo de um governo que testa os limites de seu poder ao tocar uma agenda de aceitação minoritária na sociedade. O próprio Bolsonaro já abusou da edição de decretos presidenciais, alguns dos quais derrubados pelo Judiciário e até pelo Legislativo.

Mesmo em grau inferior ao ambicionado, ampliou-se dessa forma o acesso a armas de fogo, fecharam-se conselhos consultivos e esvaziou-se um órgão federal de prevenção e combate à tortura.

No caso do meio ambiente, são as consequências imediatas que ameaçam a estratégia do ministro. O afrouxamento normativo, amigável à ala retrógrada do agronegócio, doutrinas nacionalistas e a hostilidade ao conservacionismo resultaram em disparada do desmatamento, alarme global e pressão de investidores sobre o Planalto.

Impactos assim não se disfarçam em letras miúdas do Diário Oficial.

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