Morreu porque era filho da empregada


‘Se fosse herdeiro da patroa, Miguel estaria vivo’

Patroa pede perdão em carta para mãe do menino Miguel - Jornal da ...

Flávia Oliveira - O Globo

Foi o racismo estrutural, no qual o Brasil está assentado, que tomou pelas mãos Miguel Otávio Santana da Silva, levou-o até o elevador, apertou o botão de um andar alto, liberou a porta e, indiferente, retornou ao lar.

Selou assim o destino ao qual crianças negras estão vinculadas por um projeto desumano e macabro, travestido de fatalidade.

O menino, 5 aninhos, desembarcou, passou por uma porta. À procura da mãe, deu numa área sem tela de proteção, despencou de altura de 35 metros.

Era filho único da empregada doméstica Mirtes Renata. Morreu porque era filho da empregada. Se herdeiro da patroa, estaria vivo.

A morte de Miguel é trama que guarda toda a crueldade do racismo brasileiro. A abolição aprisionou mulheres negras no trabalho doméstico remunerado e na exclusão social.

Até a pandemia, pelos dados do IBGE, a categoria somava 6,62 milhões no país, 93% mulheres, 66% negras, um terço com carteira de trabalho assinada. A Covid-19 limou 736 mil desses postos de trabalho entre fevereiro e abril.

Mulheres que em atividade ganhavam em média R$ 925 ficaram subitamente sem nada. Por isso, filhos e netos de diaristas e mensalistas criaram a campanha Pela Vida de Nossas Mães.

Reivindicavam, de início, a dispensa remunerada; depois, passaram a recolher fundos para oferecer algum dinheiro às que ficaram sem ocupação.

Mirtes Renata e sua mãe eram domésticas na casa de Sarí Corte Real, primeira-dama de Tamandaré, município pernambucano. A pandemia suspendeu o ano letivo. Ela não tinha com quem deixar o miúdo nem como faltar ao trabalho.

Perdeu o filho enquanto passeava com a cadela da família, porque a escravidão legou a mulheres como ela, em casas grandes contemporâneas, afazeres domésticos, cuidados com pessoas e até com animais.

Miguel, um menino negro, teve por guarda a indiferença. E se foi.

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