REPORTAGEM ESPECIAL - POR DENTRO DO MAIOR HOSPITAL DE CAMPANHA DE SÃO PAULO


'Estado' teve acesso exclusivo ao centro médico montado no Anhembi que tem 1.800 leitos e conversou com pacientes. Muitos sentem culpa por estarem doentes

        O secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido e o prefeito Bruno Covas em vistoria durante montagem do hospital de campanha do Anhembi

Texto: Bruno Ribeiro / Fotos: Tiago Queiroz - O Estado de .Paulo

Ser uma das quase 500 pessoas internadas com covid-19 no hospital de campanha do Pavilhão de Exposições do Anhembi significa passar noites dormindo sob luzes acesas, com o barulho de geradores de energia e da Marginal do Tietê. Dependendo da quantidade de oxigênio no sangue, é preciso avisar com antecedência para ir ao banheiro, que às vezes é distante do leito, e se conectar a tubos de gás para não ficar sem fôlego no trajeto.

O quadro de desconforto não é fruto de falta de cuidado com os pacientes. É um dos reflexos de se transformar, às pressas, o galpão de exposições em um hospital, e salvar vidas. “O Anhembi não tinha dimmer de luz”, disse a gerente médica da unidade, Tassiana Sacchi Pitta Diaz, de 37 anos. Na semana que vem, tapa olhos (como os de viagem) e protetores auriculares, recebido de doações, deverão ser distribuídos aos pacientes.

Quarto de pacientes masculinos em observação

O Estado foi a primeira equipe jornalística a entrar no hospital de campanha. O acesso, restrito, se deu após um processo em que toda a roupa é trocada e o uso de touca, óculos, máscara e avental é obrigatório. No lugar de crachás, nome escritos à caneta no avental. É assim para todos.

As adaptações no galpão incluíram levar água, energia e oxigênio para todo o complexo, montando quartos que abrigam até 20 leitos. Cada um tem duas alas de dez camas com uma enfermaria no meio. Os banheiros ficam em estruturas ao lado dos quartos.

Desta forma, uma pessoa fica internada ao lado de outros nove pacientes, sem separação. Muitos têm catéter nasal. A companhia cria amizades, mas não atenua os efeitos do distanciamento dos parentes.

A médica Tassiana Sacchi Pitta Diaz, gerente do hospital

“A maioria dos pacientes tem medo de ter passado alguma coisa, (quer saber se) a família está apresentando algum sintoma”, conta a psicóloga Hívina Machado, de 29 anos, que tem entre os trabalhos a função de intermediar chamadas de vídeo entre os pacientes e parentes. “A maioria apresenta uma sensação de culpa, de responsabilidade com a saúde do outro.”

Para quem recebe a chamada, a ligação traz outro sentimento: “Alívio de poder ver. Uma coisa é o médico falar como está a pessoa, outro é o parente ver, conversar”, afirma Hívina. Os técnicos tentam que esse contato seja diário.

A empregada doméstica Lucinéia Alves, de 53 anos, havia acabado de falar com a família quando a reportagem visitou sua ala. A ligação era para a filha. “Mas eles colocaram um celular para ver o outro”, disse Lucineia, de forma que ela terminou conversando também com a mãe e com a nora.

Lucineia Alves conversa com sua família, com a psicóloga Hívina

Lucineia se internou no Hospital do Mandaqui, na zona norte, no dia 24. No dia seguinte, foi para o Anhembi. A placa acima de seu leito traz escrito “52 anos”, o que só estava correto no dia da internação. “Fiz aniversário aqui. As meninas trouxeram bolo, colocaram um pouco no meu dedo, fizeram uma festa comigo”, afirmou, sorrindo. Ela se diz ainda cansada e sua voz é fraca. Mas conta que está comendo o máximo que pode, para poder ir embora logo.

A internação ocorreu horas depois de voltar do trabalho, em uma casa em Alphaville. Lucineia desconfia ter contraído a doença de um jovem com quem convivia, que não estava respeitando o isolamento social.

“Ele chegou um dia tossindo para cima de mim. Falei: ‘Sai pra lá!’ E ele: ‘Isso não pega não, é coisa boba.’ Para ele, que é mais jovem, pode ser coisa boba. Para mim, não foi não. Não foi nada bobo. Foi horrível”, contou.

O contato mais próximo que os pacientes têm é com a equipe de fisioterapia, que faz exercícios diários para fortalecer a musculatura do tórax. “Eles gostam dessa parte do dia. Primeiro porque se movimentam, se sentem melhores. Depois, porque conversam”, afirma a fisioterapeuta Mariana Sacchi Pitta.

“Tem muitos pacientes que têm dificuldade em expectoração. Eles fazem exercícios que ajudam na expectoração e a expandir o pulmão”, explicou a fisioterapeuta. Dessa forma, evitam precisar de um respirador artificial.

Pacientes no corredor que liga os quartos e as salas de exame

Quem dá entrada no hospital de campanha obrigatoriamente chega de ambulância, vindo de outra unidade de saúde da cidade. Parentes recebem uma ficha com informações sobre o que pode ser trazido: produtos de higiene, chinelos, remédios de uso contínuo.

A pessoa chega sozinha, sem acompanhantes, e não recebe visitas. Há uma recepção para os parentes que buscam por notícias, mas que não têm a entrada autorizada. “O médico liga todos os dias para os parentes. Também liga se o paciente vai para o leito de estabilização”, afirma a gerente médica Tassiana.

Parentes de pessoas internadas buscam informações na entrada do Anhembi

A vendedora ambulante Maria Aparecida Conceição Alves, de 61 anos, ficou dez dias nessas condições. Na quarta-feira, 29, recebeu alta, e seria buscada pela filha. Tirando o sustento nas ruas, teria de respeitar regra de isolamento quando chegasse em casa.

Perguntada sobre a solidão de estar isolada, ela respondeu com elogios à equipe que a atendeu. “O pessoal aqui é maravilhoso. Minha médica, o pessoal que trabalha à noite, todo mundo, 24 horas. Se não fosse eles, não estaria aqui”, diz. À noite, ela usava o lençol para cobrir os olhos e conseguir dormir.

Maria Aparecida acena para se despedir das colegas de quarto e de enfermeiras

Quando os pacientes têm alta, são buscados no hospital por parentes. Eventualmente, se não há condições de a família buscar, assistentes sociais podem usar ambulâncias para fazer o transporte.

INFRAESTRUTURA

Funcionários no corredor do hospital; lavanderia do complexo é terceirizada

O complexo, de 76 mil metros quadrados, está ocupado com divisórias para abrigar quartos coletivos, e uma das perguntas entre os profissionais é se (ou quando) o lugar irá lotar – a capacidade total é de 1.410 leitos e há estoque de material para até seis meses de operação.

O local está sob responsabilidade do Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (Iabas), uma das organizações sociais que gerenciam hospitais públicos da cidade. Há um segundo hospital dentro do complexo, sob responsabilidade da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), com outros 410 leitos. Oficialmente, é um mesmo hospital, mas na prática são dois, gerenciados de forma diferente. O da SPDM fica no do Palácio das Convenções do Anhembi, ao lado do pavilhão.

O Hospital Municipal de Campanha do Anhembi foi pensado para receber pacientes de baixa e média complexidade: pessoas que precisam ficar isoladas e com a oxigenação do corpo monitorada, mas que não precisam de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Há uma semana, ele passou a receber pessoas vindas diretamente dos postos de saúde. Antes, o encaminhamento vinha de hospitais, pois havia exigência de exames prévios, como o tomografia. A mudança, segundo explicou o secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido, se deu para evitar agravamentos.

“No protocolo anterior, o paciente que tinha sintomas leves era orientado a se isolar em casa e retornar ao atendimento caso piorasse. Aconteceu que muitas das pessoas que retornavam já vinham em estado muito grave, precisando de UTI”, disse ao Estado.

Agora, a Prefeitura quer acompanhar de perto também os casos leves, monitorando a oxigenação do sangue e reforçando o acesso ao gás, para evitar que eles também venham a precisar de UTIs, que neste momento beiram a taxa de ocupação de 80%.

Ambulâncias transferem pacientes que dão entrada no hospital

Ao descer da ambulância, há uma espécie de triagem de admissão. “Já sabemos as condições em que os pacientes chegam e há os protocolos”, explica a gerente médica Tassiana. É um procedimento mais para checagem dessas informações. “Quando chega, já tem um número de leito reservado para ele”, continua a médica.

Perto dos portões ficam os leitos de estabilização, unidades com os equipamentos de uma UTI para atender urgências. Os quartos têm mais equipamentos e há separação entre as camas. Os pacientes não ficam internados ali. Se vão para os leitos de estabilização, o hospital notifica a Prefeitura, que passa a procurar por uma vaga em UTI em outra unidade hospitalar, do município ou do governo do Estado.

Leito de estabilização, com equipamentos de UTI

Desse modo, o número de mortos no hospital é baixo quando comparados ao restante da rede. Até a última quinta-feira, seis pacientes haviam morrido no Anhembi, somando os setores do iabas e a SPDM. Ou os pacientes têm alta ou são transferidos. Na cidade, considerando casos suspeitos e confirmados, o total de mortos já passava de 3.300 de acordo com boletim divulgado pela Prefeitura na quinta-feira, 30.

Por turno, no hospital, há um médico para cada 20 leitos comuns e um para cada oito leitos de estabilização. Entre os leitos de estabilização e os leitos comuns, há uma ala para exames que tem tomografia, raio X e exame de sangue. “Uma das vantagens é que conseguimos fazer todos os exames aqui”, afirma a enfermeira Elizabete Mitsue Pereira, de 41 anos, gerente de projetos do Iabas, destacando que não é preciso depender de clínicas externas, como ocorre em alguns dos hospitais comuns. “O processo é mais rápido.”

A enfermeira Elizabete Mitsue Pereira, na porta do laboratório

“Pesquisamos o que estava sendo feito nos outros países, e pudemos fazer um projeto aproveitando essas práticas”, disse Elizabete. Dessa forma, os padrões criados ali estão sendo exportados para outros hospitais de campanha, de outras cidades, por meio de parcerias.

No fundo do pavilhão, ficam os setores de almoxarifado e a farmácia. E há ali a cloroquina, para ser usada seguindo critérios federais. Antes de usar o medicamento, é preciso informar aos pacientes que se trata de um medicamento experimental. “Como temos de informar todos os riscos, as reações, a maioria dos pacientes não quer”, afirma a gerente médica Tassiana, que acompanhou a reportagem durante toda a visita.

Técnicos no laboratório de análises clínicas montado no Anhembi

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