Guerra imaginária


Os brasileiros que querem a manutenção da democracia plena e do Estado de Direito deveriam expressar seu repúdio inequívoco a qualquer tentativa de banalizar medidas como o AI-5

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O Estado de S.Paulo

Foi espantosa a facilidade com que o ministro da Economia, Paulo Guedes, mencionou, na segunda-feira passada, a hipótese de adoção de uma medida de exceção nos moldes do Ato Institucional n.º 5 (AI-5) para conter eventuais manifestações violentas de oposição. Como se fosse algo trivial, o principal ministro do presidente Jair Bolsonaro considerou plausível e até natural que, a título de enfrentar uma “quebradeira” nas ruas, haja o clamor para que o governo emule o regime militar, fechando o Congresso e cassando liberdades individuais, pois foi isso o que aconteceu em dezembro de 1968 com a edição do AI-5, ora evocada.

Ao comentar recente discurso do ex-presidente Lula da Silva, que incitou a militância petista a “seguir o exemplo do povo do Chile, do povo da Bolívia” e “atacar, não apenas se defender”, o ministro Paulo Guedes declarou que “é irresponsável chamar alguém para rua para fazer quebradeira, para dizer que tem que tomar o poder”. Acrescentou que “quem acredita numa democracia espera vencer (as eleições) e ser eleito”, isto é, “não chama ninguém pra quebrar nada na rua”. E continuou: “Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”.

Que Lula da Silva aposta suas fichas no confronto com o atual governo, parece não haver dúvida. Seu discurso denota claramente essa disposição, que não seria novidade na trajetória belicosa do PT, principalmente quando está na oposição. Tampouco é novidade que junto com a “resistência” petista sempre vêm os baderneiros, que abusam da liberdade de manifestação para causar tumulto e que, quando reprimidos, posam de vítimas da “truculência” do Estado. Nada disso, contudo, justifica que se invoque a hipótese de cancelar direitos políticos e garantias individuais, o que só poderia acontecer em resposta a uma excepcionalíssima situação de rebelião interna – conforme os artigos 136 a 141 da Constituição, que versam sobre estado de defesa e estado de sítio.

Como o ministro Paulo Guedes não foi o primeiro entre os mais próximos do presidente Bolsonaro a falar em reedição do AI-5 – recorde-se a recente declaração do deputado Eduardo Bolsonaro a esse respeito –, preocupa a possibilidade de que tal flerte com a ruptura democrática esteja se disseminando no governo, a ponto de ser publicamente manifestado.

O presidente não quis comentar essas declarações de seu ministro da Economia (sobre outras declarações de Guedes, ver abaixo o editorial ‘Dólar em alta, mais um alerta’), mas é notória sua admiração pelo regime militar – para ele, “o único erro da ditadura foi torturar e não matar”. Logo, a referência ao AI-5 dentro de um governo inspirado por esse tipo de raciocínio não é casual nem inocente. Tanto é assim que o presidente Bolsonaro defende agora que as forças de segurança envolvidas em repressão a protestos tenham licença para matar – chamada de “excludente de ilicitude” para operações de Garantia da Lei e da Ordem. Para tanto, basta classificar a manifestação como “ato terrorista” caso haja algum episódio violento.

Um desavisado que chegasse hoje ao Brasil poderia imaginar, ouvindo esse discurso, que o País está à beira de um conflito civil. Esse estrangeiro estranharia, contudo, o fato de não haver nas ruas nenhum sinal de conflito – apenas o vaivém cotidiano dos cidadãos para cumprir seus compromissos. E diante disso talvez o visitante se perguntasse, com razão, o que pretende um governo que demonstra tanta preocupação com esse confronto imaginário, a tal ponto de parecer mesmo desejá-lo.

Os brasileiros que querem a manutenção da democracia plena, do Estado de Direito e da estabilidade política e social deveriam se fazer a mesma pergunta. Mais do que isso: deveriam expressar seu repúdio inequívoco a qualquer tentativa de banalizar medidas de exceção como o AI-5, especialmente quando a tentativa parte de quem está no poder e que, mais que todos, deve dar o exemplo de respeito às liberdades democráticas gravadas na Constituição que jurou cumprir. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, resumiu bem a questão: “Não dá para usar a expressão ‘AI-5’ como se fosse bom dia ou boa noite”.

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