Para combater milícias digitais, a mídia precisa ser transparente
Folha de S.Paulo
Um incidente recente com o jornalista Octavio Guedes, da GloboNews, dá uma boa ideia das dificuldades hoje envolvidas não apenas no trabalho dos profissionais da mídia como também no de quem é pago para analisá-la e criticá-la.
Guedes foi fotografado em um restaurante perto da Globo, no Jardim Botânico, no Rio, fazendo anotações durante um almoço com José Eduardo Gussem, procurador-geral do Ministério Público do Rio.
Depois de circularem nas redes sociais, as fotos foram exibidas por Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) durante uma entrevista ao SBT. Segundo ele, eram uma prova de que informações sigilosas a respeito da investigação que a Promotoria faz a seu respeito foram vazadas para a Globo.
A repórter Débora Bergamasco chegou a observar: "Não é normal que jornalistas conversem com autoridades? Como é que o senhor pode dizer que eles estavam conversando sobre o seu processo?". Mas o senador ignorou a primeira pergunta e aproveitou a segunda para ironizar: "Um encontro como esse, pra trocar receita de bolo é que não era!".
Em comentário na própria GloboNews, Guedes disse que, por causa da divulgação das fotos, foi alvo de uma "milícia digital", mas que não vai se deixar intimidar: "Eu vou continuar apurando e vou continuar sempre ouvindo os dois lados, de preferência em ambientes públicos. Isso se chama jornalismo".
Eis aí o centro do problema. O espectador, leitor ou internauta sabe como é feito o que se chama jornalismo?
A revolução digital aproximou muito o consumidor de notícias do jornalista. Primeiro, por email (no lugar da carta) e posteriormente pelas redes sociais.
Com a possibilidade de fazer comentários instantâneos, ele perdeu a cerimônia e se sentiu à vontade para assumir a posição de crítico de mídia. O que vejo de forma positiva. Porém...
O ambiente de polarização política, mais facilmente identificável a partir de 2013, tornou muito intenso o bate-boca entre consumidores de informação e os seus provedores. A sensação de estar sendo vítima de uma "milícia digital", tal como relatado por Guedes, hoje é comum.
Parte dos problemas ocorre justamente em função do desconhecimento de parte do público de meandros do fazer jornalístico. Como disse o comentarista da GloboNews, todo repórter almoça com fontes em locais públicos. É uma situação banal.
Para combater maledicências, jornalistas e empresas não deveriam ter receio de descrever como é realizado o trabalho dos profissionais de mídia.
Ao crítico, acrescenta-se a necessidade, neste ambiente em que as suscetibilidades estão no limite, de descrever de forma o mais objetiva possível os problemas envolvidos no trabalho jornalístico.
Veja, por exemplo, o que aconteceu em Davos, na Suíça, há dez dias. O presidente Jair Bolsonaro cancelou uma entrevista coletiva no Fórum Econômico Mundial e falou à Record no mesmo dia, explicando que desistiu de falar com jornalistas do mundo inteiro por orientação médica. Deu uma entrevista para explicar por que cancelou uma entrevista.
Ou o caso da entrevista com Michelle Bolsonaro, exibida no último domingo pela Record. Como observou Nelson de Sá, na Folha, o problema maior não foram as perguntas, mas uma que deixou de ser feita, sobre o depósito de Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama.
Estes dois exemplos mostram que, às vezes, a simples descrição já é suficiente para uma boa compreensão do fato.
*Mauricio Stycer - Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.
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