'Pela credibilidade do sistema de Justiça', artigo de Raquel Dodge


Apenas no Brasil o Judiciário entendia que só se poderia executar uma sentença após quatro instâncias judiciais confirmarem a condenação; trata-se de exagero revisional que aniquila o sistema de Justiça, porque a Justiça tarda e, por isso, falha

Folha.com

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em sessão no STF em outubro de 2017 
Foto: Pedro Ladeira - Folhapress

Até bem pouco tempo, o Brasil era conhecido, inclusive em âmbito internacional, por ter um sistema penal em que autores de crimes ou eram punidos de modo tardio (anos após a prática do delito) ou simplesmente não eram punidos (pela ocorrência da prescrição).

O modelo que levava a essa disfunção era simples e resultava da combinação de dois fatores: a exigência de se aguardar o trânsito em julgado da condenação para a execução do acórdão e o sistema de múltiplos recursos, que permite a protelação do trânsito em julgado da decisão por tempo quase infinito, a depender da disposição da defesa em recorrer. A sensação de impunidade e a descrença na Justiça nutriam-se desse modelo.

Em dezembro de 2016, graças ao Supremo Tribunal Federal, esse cenário finalmente teve uma relevante mudança. No julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo n. 964.246/SP, em que foi reconhecida a repercussão geral do tema, a corte consolidou um entendimento que já havia adotado naquele mesmo ano, o de que "a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal".

O novo precedente colocou o Brasil ao lado das principais e mais maduras democracias do mundo, como a dos EUA, da Alemanha, da Itália e da França, países de evidente tradição no reconhecimento de direitos fundamentais dos cidadãos, que acolhem o princípio da presunção de inocência e admitem a execução provisória da pena de prisão.

O princípio da presunção de inocência é uma garantia pessoal importante em todos os países. No entanto, apenas no Brasil o Poder Judiciário entendia que só se poderia executar uma sentença após quatro instâncias judiciais confirmarem a condenação. Trata-se de um exagero revisional que aniquila o sistema de Justiça, porque a Justiça tarda e, por isso, falha.

O que a Constituição garante é o duplo grau de jurisdição para assegurar a correção de erros eventuais. Garante também segurança jurídica e eficiência, que inexistem em um sistema em que o processo não termina ou só termina quando está prescrito. A revisão de fatos e provas só ocorre até o segundo grau de jurisdição. Ali é que são apresentadas as provas e os depoimentos das testemunhas. Por isso, a Constituição garante o reexame judicial: para corrigir erros sobre as provas da culpa do condenado.

Acima dessa fase, a discussão é meramente de teses jurídicas, principalmente sobre o tamanho da pena, seu regime de cumprimento e eventual erro processual.

Alguns ministros do STF deixaram de observar o precedente, proferindo decisões monocráticas fundadas em suas convicções individuais de que a execução provisória da pena ofende o princípio da presunção de inocência previsto art. 5º-LVII da Constituição. Finalmente, em 22 de março, foi levado a julgamento o Habeas Corpus nº 152.752, impetrado em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A tentativa é assegurar que ele responda ao processo em liberdade até o trânsito em julgado de eventual decisão penal condenatória.

O julgamento do HC 152.752 põe à prova o precedente vinculante, que é o principal avanço na sequência de mudanças rumo a uma maior efetividade do sistema penal brasileiro. Mas não é só a efetividade do sistema que poderá ruir. A segurança jurídica e a própria confiança da população na estabilidade e coerência das decisões da Suprema Corte estão em risco.

Não há dúvida de que a jurisprudência das cortes superiores pode ser revista, já que um sistema de precedentes vinculantes engessado e imutável estaria fadado à falência por se tornar obsoleto. Mas essa revisão deve ser feita quando o precedente já não mais corresponder à lei e ao sentimento de justiça da sociedade. Nesse contexto, é necessário afirmar que o precedente vinculante do ARE n. 964246 não perdeu sua congruência social, nem se tornou injusto. Ainda corresponde ao sentimento de justiça do cidadão comum.

Esse precedente vinculante expressa a melhor interpretação do princípio da presunção de inocência, de modo coerente com a segurança jurídica que se espera do sistema penal.


*Raquel Dodge é Mestre em direito pela Harvard Law School (EUA), integra o Ministério Público Federal há 30 anos e, desde setembro de 2017, é procuradora-geral da República

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