"Derrota e paranoia", artigo de Tony Bellotto


É preciso ter a firmeza de caráter e capacidade de delírio de um personagem de Tolstói para sobreviver neste Brasil degradado


Tony Bellotto Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O GloboDerrota.

Quem foi mesmo que venceu as eleições para presidente? A Dilma, certo? Por que, então, o atual governo age como se tivesse sido derrotado? Por que a presidente (“presidenta” é impronunciável) e seus ministros vivem de cara amarrada a distribuir muxoxos e impropérios? Não ganharam as eleições? Não é o que queriam? Qual a razão de tantos narizes torcidos e caras feias e enfezadas? Mostrem alguma alegria, pelo menos.

Vitória.

E o Aécio? É a própria figura do vencedor: assertivo, sorridente, confiante. Não perdeu as eleições? Não era de se esperar que estivesse de cabeça baixa a choramingar o fracasso eleitoral com seus botões dourados? Mas não, o mineiro está altaneiro e otimista, esbanjando esperança como um bebê de propaganda de fraldas. Não é para menos, deve ser um alívio NÃO vencer uma eleição presidencial no Brasil, ex-República das Bananas, atual República dos Abacaxis. Pense na Marina quando surgiu logo após a derrota no primeiro turno: vaporosa, cabelos soltos, sorriso largo, a encarnação da alegria de viver. Ficou tão feliz que nunca mais se ouviu falar dela.

Napoleão.

A vitória da Dilma lembra a de Napoleão, na Rússia, quando o megalômano general invadiu uma Moscou abandonada e incendiada por seus habitantes. Sem provisões, o Imperador e sua Grande Armée tiveram de abandonar a cidade vazia pouco tempo depois. E no inverno rigoroso que se abateu sobre a Rússia em 1812, Napoleão, apesar de vitorioso, meteu o rabo entre as pernas em fuga desabalada pelo território conquistado, com seu exército literalmente dizimado pela fome e pelo frio.

Guerra e Paz.

No grandioso romance “Guerra e paz”, Tolstói analisa os paradoxos da luta entre franceses e russos na campanha de Napoleão pela conquista da Rússia: “O período da campanha de 1812 que vai da batalha de Borodinó até a expulsão dos franceses provou que uma batalha vencida não só não é causa de uma conquista, como também não é sinal evidente de uma conquista; provou que a força que decide a sorte dos povos não repousa nos conquistadores, nem nos exércitos, nem nas batalhas, mas em outra coisa”, vaticina o igualmente grandioso escritor russo. A nós cabe decifrar urgentemente a que se refere Tolstói com “outra coisa”.

Paranoia.

Don DeLillo, originalíssimo escritor norte-americano e analista agudo dos loucos tempos atuais, entende a paranoia como um fator determinante das ações políticas e históricas do século XXI. Ainda que a paranoia muitas vezes conduza a uma perturbação que dificulta a compreensão da realidade, ela é, antes de tudo, um valioso mecanismo da evolução que ajuda a exacerbar os estados de alerta que nos acometem quando nos sentimos acuados ou em perigo.

Perigo.

Outro dia, Aécio Neves, numa entrevista na TV, declarou que somos governados por uma organização criminosa. A declaração, obviamente, gerou muita polêmica, beligerância e comentários díspares. A princípio, interpretei a declaração como retórica política eivada de exagero calculado. Achei a colocação desmedida, embora alguma coisa nela sugerisse aquele tipo de verdade inconveniente que gostamos de varrer para baixo do tapete. Mas, com o pipocar ininterrupto nos jornais dos escândalos da propina na Petrobras — e a crescente suspeita de que a corrupção se estende a outras obras e empresas —, entrei num estado esquisito de paranoia e acuação e comecei a considerar a possibilidade de Aécio estar certo.

Veneno.

Parece improvável que o governo como um todo possa agir como uma organização criminosa, claro. Concordo. Deve ser paranoia do Aécio. Mas não é MUITO estranho que nem Graça Foster nem Dilma Rousseff desconfiassem nem um pouquinho das lambanças homéricas que ocorrem há anos sob suas saias? Será que nunca perceberam nada mesmo? Se não foram coniventes, o que posso aceitar tranquilamente, foram, no mínimo, inaceitavelmente ingênuas ou, pior, vergonhosamente incompetentes. Ou, quem sabe, perigosamente omissas, se se comprovarem verdadeiros os alertas de Venina Velosa. Venina (perdão pelo trocadilho óbvio), como uma substância extirpada do âmago da serpente, talvez acabe por nos fornecer o antídoto para o veneno da corrupção.

Tolstói.

Talvez todo o estoicismo do mundo não seja suficiente para enfrentar as agruras de um país cujos pilares éticos estão arruinados. É preciso ter a firmeza de caráter e capacidade de delírio de um personagem de Tolstói, ou do próprio Tolstói, para sobreviver neste Brasil degradado.


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