Crítica: Lembranças de José Serra sobre exílio são prazerosa lição de vida


Edmar Bacha - Folha Ilustrada 


Ernesto Rodrigues/Folhapress 
José Serra no lançamento de seu livro, 'Cinquenta Anos Esta Noite', no Conjunto Nacional

"Fiz das tripas coração" seria um subtítulo adequado para este cativante livro de José Serra, sobre sua experiência de 13 anos no exílio após o golpe militar de 1964 —uma provação da qual retornou preparado para se tornar um dos mais competentes políticos brasileiros da atualidade.

O texto começa de forma dramática com o relato de uma reunião sigilosa dos dirigentes da Frente de Mobilização Popular com o presidente João Goulart, em outubro de 1963.

Serra, com seus tenros 22 anos de idade, participava como presidente da UNE e propunha a retirada do projeto de estado de sítio que Jango havia enviado ao Congresso. O temor de Serra, como de outros membros da Frente, era que o estado de sítio abrisse caminho para uma ditadura militar de verdade.

Jango concordou em retirar o projeto. Mas essa decisão, para Serra, apenas revelou que o presidente não encontrara o suporte militar necessário e se conformara com a ideia de que não iria terminar seu mandato. Mas ninguém ali naquela reunião antecipava a tragédia que os esperava daí a seis meses.

Uma tragédia também para Serra, que foi um dos alvos preferenciais dos militares que assumiram o poder em 1º de abril de 1964. Serra refugiou-se na embaixada da Bolívia no Rio de Janeiro e nela teve de ficar por mais de três meses antes de conseguir autorização para viajar.

EXÍLIO

Em La Paz, Serra aprendeu "que exílio não é a ausência do país, estar longe de casa. É falta de documentos e impossibilidade de voltar". Depois de cinco semanas de tratativas, conseguiu a duras penas que a embaixada francesa lhe desse um visto de entrada na França num salvo-conduto boliviano mambembe.

Paris foi apenas um porto de transição, pois Serra "não deixava de pensar em voltar ao Brasil". Numa aventura mirabolante, voltou para a América Latina e entrou no Brasil a pé, pela fronteira com o Uruguai, disposto a instalar-se como clandestino.

Mas levou apenas algumas semanas para convencer-se de que o aparato de repressão militar terminaria por localizá-lo e prendê-lo.

Partiu, então, desta vez definitivamente, um ano após o golpe, em direção ao Chile, onde, sem abandonar a política, daria início à trajetória de economista profissional.

Na ocasião do golpe, Serra cursava a Escola Politécnica da USP, mas, ao constatar que seus créditos acadêmicos não seriam reconhecidos no Chile, desistiu de se tornar e engenheiro.

Para mudar de profissão, "nunca estudei tanto em minha vida como naquele período", diz ele. Prestou exames equivalentes a cinco anos do curso de graduação em economia da Universidade do Chile, e foi admitido na Escolatina, obtendo o título de mestre em economia pela universidade em 1968.

TERCEIRA VIA

Brasil e Argentina sucumbiram a ditaduras militares. Mas Chile e outros países andinos sustentavam a esperança de ser possível uma "terceira via" democrata-cristã na América Latina.

Esse sonho começou a se desfazer em 1970, com a eleição de Salvador Allende, cujo projeto de socialismo com "empanada y vino tinto" provou ser insuportável para a direita chilena.

Poucos dias após o golpe de Pinochet de 11 de setembro de 1973, com ordem de prisão por ser um intelectual "subversivo, izquierdista e muy vivo", Serra é detido no aeroporto e levado para o Estadio Nacional do Chile, onde centenas de pessoas estavam sendo não só interrogadas, mas também assassinadas.

Liberado de forma dramática, refugia-se na embaixada da Itália que passa a ser sua residência pelos próximos oito meses. Após intensas pressões internacionais consegue um salvo-conduto para sair do Chile, tornando-se assim um duplo exilado.

Entre as oportunidades acadêmicas que se lhe abriram, Serra opta pela Universidade de Cornell nos Estados Unidos. Cursa o programa de doutorado em economia e escreve uma tese sobre a política econômica do governo de Allende.

No processo, entra em contato com Albert Hirschman, que lhe convida para trabalhar no Institute for Advanced Study da Universidade de Princeton. Ali permanece até seu retorno ao Brasil em 1978.
Impressiona neste livro de José Serra como ele consegue tratar sem ressentimentos, até mesmo com humor, de forma leve e direta, esse período extraordinário de sua vida, em que "houve distância e dor em demasia", vivendo 13 anos no exílio. É uma prazerosa lição de história e de vida.

*EDMAR BACHA é diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças.

AUTOR José Serra
EDITORA Record
QUANTO R$ 35 (266 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

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