Entrevista de FHC ao iG


“O Plano Real se chamava Plano FHC”

Em entrevista ao iG, Fernando Henrique Cardoso diz por que se considera o pai do real. Atribui papel decisivo ao grupo liderado por Gustavo Franco e diz que Lula e Dilma mantiveram seus princípios básicos.

Tales Faria - iG 

Em junho de 2011, quando completou 80 anos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso concedeu uma entrevista ao iG em que falou principalmente de política. Agora que o Plano Real atinge 18 anos de sua criação, em 1º de julho de 1994, FHC fala novamente com exclusividade ao iG, desta vez com ênfase na questão econômica

É claro que sempre sobra para a política, como por exemplo quando ele admite que o calendário político influiu na definição do prazo de validade da URV (Unidade Real de Valor) – um índice lançado em março de 1994 para refletir a variação do poder aquisitivo da moeda em vigor, que serviu como unidade de referência de valores até a data de instauração do real, em julho, às vésperas da campanha eleitoral que elegeu FHC presidente da República.

Na entrevista, FHC diz que o ex-presidente Itamar Franco não se envolveu nas articulações políticas pela implantação do Plano Real e que o grande papel de Itamar foi servir como “a mão forte” para seu ministro da Fazenda. No caso, o próprio Fernando Henrique.

O ex-presidente diz que os fundamentos do Plano foram mantidos por seus sucessores – Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff – e que o tripé da atual política macroeconômica (câmbio flutuante, meta fiscal e meta de inflação) foi instaurado no seu governo pelo então ministro da Fazenda, Pedro Malan, e pelo presidente do Banco Central, Armínio Fraga, em 1999.

Valéria Gonçalvez/AE

FHC revela que quando estourou a crise mundial de 1999, sofreu grande pressão externa para adotar no Brasil o modelo de currency board (atrelamento da moeda ao dólar). Segundo ele, “como o FMI não apoiou o Plano Real”, foi possível resistir à pressão.

O ex-presidente afirma que em sua época “as conjunturas (déficits externos, crises etc.)” não permitiam que ele baixasse os juros tanto quanto queria. Que só a partir de 2004, com a prosperidade internacional e uma “política correta de aumento da reservas no BC”, as condições se tornaram mais favoráveis. Mas admite que deve-se muito à presidenta Dilma o patamar atual: “É inegável que o pulso da governante foi importante para baixar os juros.”

iG: Qual o papel da abertura comercial do governo Collor para o sucesso do Plano Real?

Fernando Henrique Cardoso: A abertura da economia foi fundamental para que tivéssemos um parâmetro de preços e fosse possível, pela importação, evitar o desabastecimento e o descontrole dos preços. Embora eu tivesse reduzido o ímpeto da abertura quando fui ministro da Fazenda, não deixei que houvesse novos aumentos na tarifa de importações.

iG: Em que medida os fracassos anteriores, nos anos 80, contribuíram para o plano?

FHC: O aprendizado com os planos anteriores, principalmente com o Cruzado, foi importante. Alguns dos economistas do real participaram de experiências anteriores e sabiam que sem controle fiscal e com aumento de salários no ponto de partida a expansão da demanda sem aumento imediato da produção traria a inflação de volta. A mera estabilização de preços já tinha um efeito de aumento do poder de compra.
Agência Estado
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na época do lançamento do Real

iG: Qual o papel do ex-presidente Itamar na articulação política do plano, ele teve um papel relevante?

FHC: O presidente Itamar não se envolveu nas articulações políticas para que o plano fosse aprovado. Mas com a mão forte que me deu ajudou muito.

iG: Afinal, quem é o pai do Plano? Itamar, FHC, Ricúpero? Ciro Gomes?

FHC: Até a minha saída do ministério (abril de 1994) o plano se chamava “F H C”, o que mostra a quem se atribuía, na época, a autoria. É inegável, entretanto, que sem o apoio irrestrito que o presidente Itamar me deu e sem a capacidade do embaixador Ricúpero de comunicar-se com a sociedade na fase inicial de implementação o plano tampouco teria obtido êxito. Quanto a Ciro Gomes, foi ministro por três meses apenas e pouco havia para fazer. Mesmo assim, com a crise do Ricúpero, se o governo não dispusesse de um nome forte para substituir o embaixador, haveria conseqüências negativas.

iG: E o Serra? Qual foi o papel dele? Ajudou mais ou atrapalhou o Malan?

FHC: O Serra foi importante na preparação do Plano de Ação Imediata (PAI), que antecedeu o anúncio do Plano Real (feito em dezembro de 1994). Ajudou a aprovação de medidas importantes para o êxito do Plano, como o Fundo Social de Emergência.

iG: E o Gustavo Franco?

FHC: O Gustavo foi essencial. Os formuladores do programa – André Lara Resende, Pérsio Arida e Edmar Bacha, entre os quais incluo o próprio Gustavo – são brilhantes e inventavam a cada reunião novas propostas. Era o Gustavo, em geral, quem as esmiuçava e as trazia sob a forma de decretos, medidas provisórias ou leis. Além do mais ele, junto com Eduardo Jorge, se encarregava dos aspectos jurídicos e das relações com os advogados. Gustavo, ainda mais, deslindou toda a trama dos efeitos do Plano sobre os contratos trabalhistas.

iG: O Proer foi importante para a estabilização?

FHC: Sem o Proer, sob orientação do Malan e do Gustavo Loyola, não teria havido continuidade na estabilização. Foi um programa engenhoso e que responsabilizava os autores por eventuais malfeitos, diferentemente do que fizeram os norte-americanos e do caos em que se debatem os europeus diante da crise financeira.

iG: Como foi escolhido o prazo de validade da URV? O calendário político importava?

FHC : É indiscutível que o calendário político importava. Mas o final da URV, em julho de 94, se deu quando as condições já estavam maduras, tanto que houve sucesso imediato. Eu achava que mesmo em junho teria sido possível transformar a URV em real, tal a aceitação do Plano.

iG: A grande crítica ao Plano Real foi a gestão fiscal. Por que houve dificuldade em se promover um ajuste?

FHC: Nós promovemos um ajuste paulatino. O PAI cortara 50% do orçamento, o Fundo Social de Emergência deu o controle de 20% das verbas ao Governo Federal, por outro lado, havia duas preocupações: não desrespeitar contratos e evitar a recessão. Não se esqueça de que o FMI não apoiou o real e de que eu nunca fui monetarista nem anti-desenvolvimentista. Se apertássemos demasiadamente o lado fiscal estaríamos como estão hoje a Grécia, Portugal ou mesmo a Espanha e a crítica seria a oposta...

iG: Por que não se optou por um currency board, como na Argentina? O modelo chegou a ser considerado?

FHC: Porque não queríamos ficar sem capacidade de ajustar o câmbio, com a economia atada ao dólar. Mesmo havendo uma pequena desvalorização do Real isso não foi suficiente para segurar os mercados na crise de 1998/99, imagine-se o que ocorreria com o câmbio totalmente fixo atado ao dólar. Quando fizemos o real, como o FMI não nos apoiava, eles não podiam pressionar pelo currency board. Quando estourou a crise em janeiro de 1999, aí sim, houve pressão nesse sentido, mas nós não aceitamos as propostas de apoio em troca de currency board, pelas mesmas razões.

iG: Houve uso político na questão da âncora cambial? Por que não se alterou o regime antes? Qual era o limite da política cambial?

FHC: A âncora cambial era muito importante para o controle dos preços, como ainda hoje, basta ver como o BC intervém para evitar a desvalorização excessiva. Na época, temíamos que houvesse a volta da inflação com o afrouxamento da âncora cambial. O argumento de que se tratava de populismo cambial é de má fé: depois de reeleito em 3 de outubro de 1998, continuei tentando evitar que o câmbio disparasse. Queria que deslizasse mais depressa, mas continuando a agir como freio para o controle de preços. O mercado “estourou” em janeiro de 1999, contra nossa vontade. Não foi astúcia para primeiro ganhar as eleições e depois afrouxar... Quase todos, depois de janeiro de 1999, acreditaram que o Plano estaria arruinado. Lutamos e em poucos meses o temor da volta da inflação desapareceu. Mas essas coisas só se sabem depois que acontecem... “Ah, se tivéssemos desvalorizado em janeiro de 1997...!” É, mas quem sabe o que teria acontecido?

iG: Em que medida o quadro externo no final dos anos 90 prejudicou o plano?

FHC: O plano externo jogou contra quase todo o tempo: dezembro de 1994-crise do México; 1997-crise asiática;1998 -crise da Rússia e da Argentina, em 2001, crise das Torres Gêmeas, antes disso crise americana e assim por diante. As exceções foram 1996 e 2000.

iG: O atual tripé de política macroeconômica (câmbio flutuante, meta fiscal e meta de inflação) foi instaurado no seu governo?

FHC: Sim, este tripé foi instaurado pela dupla Malan/Armínio Fraga depois de janeiro de 1999.

iG: Foi apenas fruto dos eventos, pressões e exigências de curto prazo ou foi uma coisa planejada?

FHC: Foi um misto de tudo isso. Com o estouro do câmbio controlado, voltamos a idéias que haviam sido discutidas em fevereiro/março de 1995 para deixar que o câmbio flutuasse. As metas de inflação haviam sido exitosas na Inglaterra e em outros países. Sem a âncora cambial precisávamos de outro regulador. A lei de responsabilidade fiscal foi aprovada em 2000, em negociação conduzida pelo Martus Tavares.

iG: Qual o principal risco enfrentado pelo plano?

FHC: Um programa da envergadura do real – que queria para acabar com a inflação, modernizar a administração e “pôr ordem na casa” – não depende de um só ato; trata-se de um processo, que além de econômico e técnico é eminentemente político. Toma tempo e está sujeito a idas-e-vindas.

iG: Qual a maior vitória?

FHC: A persistência e a definição do rumo. Este estava dado desde dezembro de 1994. Talvez o mais significativo tenha sido a mudança de mentalidade, uma reviravolta cultural: sem racionalidade econômica, como melhorar a vida? Como atender aos mais pobres? Como investir e planejar?

iG: Faz sentido dizer que a estabilidade econômica é uma agenda consolidada e que o País terá que enfrentar agora novos desafios?

FHC: Tomara esteja mesmo consolidada. Mas que avançamos muito, não há dúvidas e de que sem ela seria mais difícil enfrentar os desafios atuais tampouco há dúvidas.

iG: O quadro institucional construído ao longo dos últimos 20 anos corre risco de retrocesso?

FHC: Dizia-se sobre a democracia no Brasil ser planta tênue que requer água regada o tempo todo. O mesmo se aplica à estabilidade de preços com tudo que requer ou vem junto.

iG: Faz sentido falar em “Maioridade do Real”? E faz sentido comemorá-la?

FHC: Ainda falta um tempinho para que ele chegue aos 21 anos... A melhor maneira de comemorá-lo é mantê-lo (mesmo que falando mal dele).

iG: O Plano ainda existe?

FHC: O Plano como tal já não existe. As políticas que ele permitiu e as que o deixaram nascer, estas sim estão aí.

iG: O governo Lula o manteve?

FHC: De um modo geral, sim.

iG: E a presidenta Dilma? Como ela tem tratado o Real?

FHC: A presidente Dilma encontra a economia do País e do mundo em nova fase. A nossa mais próspera; a do mundo em pandarecos. Sendo assim, é óbvio que ajustes são necessários. Eu não vejo cada modificação como um atentado contra o real. Naturalmente, política econômica é navegação: é preciso ver onde apontam os icebergs e o que fazer para contorná-los. Isso requer sintonias finas, para não desarranjar as máquinas do navio.

iG: Por que a questão dos juros elevados nunca foi enfrentado de modo claro pelos governos (inclusive o seu) e pela academia?

FHC: Em minha época as conjunturas (déficits externos, crises etc.) não permitiam mexer nos juros. A partir de 2004, com a prosperidade internacional e a política correta de aumento da reservas no BC, as condições se tornaram mais favoráveis à baixa de juros. Mas é inegável que o pulso da governante foi importante para baixar os juros. Espero que não advenham novas pressões inflacionárias que forcem a uma volta atrás.

iG: Porque a inflação no Brasil continua sendo maior que a média mundial?

FHC: Porque nós sempre preferimos manter um olho no crescimento e nunca conseguimos desindexar completamente os preços.

iG: Em que medida o Plano Real falhou na desindexação plena da economia?

FHC: De novo, para desindexar tudo só com uma freada que teria efeitos recessivos. Optamos pelo gradualismo. Não creio que, no período de implantação do Real, tenha havido uma falha, propriamente. Faltavam condições políticas e sociais para indexar mais depressa.

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