FHC rebate, em suas memórias, a suposta “compra de votos” para a reeleição


FHC no jantar de comemoração de seu aniversário de 80 anos, em São Paulo

Amigos, com a evidência proporcionada pela celebração de seus 80 anos e as várias entrevistas que concedeu, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso viu reemergir, aqui e ali, referências à suposta “compra de votos” que teria ocorrido em seu favor para que o Congresso aprovasse, em 1997, o instituto da reeleição para a Presidência da República, governos estaduais e prefeituras.

Aqui mesmo no blog, críticos do ex-presidente e do PSDB têm voltado ao assunto.

Por essa razão, julgo oportuno transcrever o trecho em que o ex-presidente trata do assunto em suas memórias políticas — A Arte da Política — A História que Vivi (Civilização Brasileira, 2006, quarta edição, revista, 2011). Entre muitos outros pontos, FHC lembra algo sempre deixado de lado por quem ainda o causa: havia 27 governadores e milhares de prefeitos interessados na reeleição.

O trecho é o mais longo e minucioso comentário já feito por FHC a respeito do assunto.

Uma nova onda de modificações no governo viria em abril de 1997. As condições e características dessa nova mexida foram semelhantes às das alterações anteriores. Nelas o que importa ressaltar, mais do que as minúcias históricas, é o vaivém do jogo político. O Presidente guarda, naturalmente, a última palavra. Em determinadas ocasiões, contudo, mal pode balbuciá-la, tal a força dos acontecimentos. Os personagens envolvidos nas decisões são poucos e quase sempre os mesmos, no caso o segmento do círculo próximo que participa das decisões políticas e um ou outro dirigente partidário, às vezes também membro desse círculo, que opina por sua força nstitucional. Raramente os interesses organizados da sociedade e seus grupos de pressão atuam diretamente nas escolhas. Esta pressão se dá, muito indiretamente, por meio de comentários na imprensa.

No jogo com partidos e candidatos a ministro ou a cargos de alto escalão, o Presidente procura preservar seus objetivos. Os partidos, bem como individualmente os líderes políticos, buscam não só maior controle efetivo da máquina pública e dos mecanismos decisórios, mas freqüentemente a manutenção ou a expansão de sua presença simbólica no tabuleiro do poder.

Nessa hipótese, em geral mal lhes importa a competência do designado para a função. Mais vale que “fulano é meu” ou “fui eu quem o indicou”. Nesse equilíbrio simbólico de poder entram considerações sobre a influência relativa de cada partido, de cada Estado ou de cada corrente ou líder dentro do mesmo partido. Feita a nomeação, os “padrinhos” pouco se interessam pelo desempenho do indicado, e sobra para o Presidente e para o governo apagar os incêndios eventualmente provocados com a nomeação, ou responder pela ineficiência daperformance.

As mudanças entre maio e junho de 1997 foram tocadas ao sopro do vendaval político. As reformas caminhavam lentamente. Em fins de abril, o governo chegou a perder uma votação importante na reforma administrativa.

A privatização da Vale provocou forte reação entre procuradores da República, OAB, CNBB, CUT e demais organizações influenciadas em maior ou menor grau pelo PT e pelas esquerdas em geral. As afrontas ao Presidente se multiplicavam, chegando a ponto de a maioria dos procuradores da República assinarem uma nota ameaçando-me de processo por “crime de responsabilidade”. O desassisado da ameaça era total.

Eu exercia o poder de acordo com a Constituição para efetivar políticas aprovadas pelo Congresso, como, no caso, a privatização. A nova política, contudo, feria os interesses e as suscetibilidades ideológicas de muitos procuradores, como de vários grupos políticos e de pressão, que haviam sido derrotados nas eleições.

O próprio STF, pela decisão individual de um ministro — não vem ao caso lembrar quem foi —, acolheu liminar que interferia no andamento das votações na Câmara, sustando matéria previdenciária, e assim por diante.

No plenário do Congresso, cada vez que o governo ganhava, lá vinham os “apitaços” para significar que supostamente houvera barganha e, em seguida, a oposição levava as decisões legislativas ao STF, para impedir seus efeitos. Verificou-se uma verdadeira “tribunalização” da política. Enfrentávamos uma guerrilha cotidiana de liminares para impedir a ação administrativa do governo, principalmente nas privatizações.

Para cúmulo, em maio, fui surpreendido e reagi com indignação à volta das infâmias: a denúncia de compra de votos, não pelos opositores à tese da reeleição, mas pelo governo! As votações sobre a reeleição, já aprovada pela Câmara, iam se arrastado no Senado. Enquanto isso, as oposições, PT à frente, mas com respaldo de parte da imprensa, criaram a novela da “compra de votos”.
A privatização da Vale provocou forte reação entre organizações influenciadas em maior ou menor grau pelo PT e pelas esquerdas em geral

No dia 13 de maio, antes da votação da emenda no Senado, surgiu a “denúncia”: a Folha de S. Paulo publicou a transcrição de trechos de conversas entre o deputado Ronivon Santiago (PFL-AC) e um personagem não identificado, chamado na matéria de “Senhor X”, que teria feito as gravações e entregue ao jornal. Nos trechos publicados, Ronivon afirma que ele e outros quatro deputados, todos do Acre — João Maia, Zila Bezerra e Osmir Lima, do PFL, e Chicão Brígido, do PMDB — teriam recebido 200 mil reais cada um para votar a favor da reeleição. O dinheiro teria sido prometido pelo governador do Acre, Orleir Cameli (sem partido), e o pagamento efetuado pelo governador do Amazonas, Amazonino Mendes (PFL).

Sérgio Motta: supostos fatos eram "absurdos, mentirosos e surrealistas"
No dia seguinte, 14 de maio, a Folhatrouxe novos trechos de conversas gravadas pelo “Senhor X” com Ronivon e João Maia. Em alguns desses trechos são citados [o então ministro das Comunicações] Sérgio Motta [falecido em 1998], [o deputado] Luís Eduardo Magalhães [PFL-BA] e o deputado Pauderney Avelino (PFL-AM). Em 15 de maio, na terceira e última matéria da Folha baseada nas gravações do tal “Senhor X”, Ronivon alega que teria recebido do ministro Sérgio Motta uma concessão de TV e iria receber uma de rádio.

As matérias da Folha, com base nessas conversas, sustentavam o envolvimento do governo na compra de votos dos deputados para a emenda da reeleição. Pronto. Essa versão foi abraçada pela oposição, que passou a exigir a instalação de uma CPI e a anulação da votação da emenda na Câmara. Na voragem do denuncismo, estava feita a “prova” do fato e do envolvimento de Sérgio Motta no caso.

Era o “Fora FHC”. Qualquer argumento parecia bom para minar o prestígio do governo, sobretudo na área da decência.

Como indício de que eu estaria envolvido na operação apareceu outra “prova”: teria recebido os governadores do Acre e do Amazonas em três ou quatro oportunidades no decorrer do ano. Naturalmente se esqueceram de cotejar quantas vezes concedi audiência aos outros governadores, com alguns do quais tive até onze encontros. Não importa, levantara-se a suspeita. Deputados petistas, sempre prontos a encenar a farsa do bom-mocismo ético, se deram ao desplante de ir lavar a rampa do Palácio do Planalto para, em manobra à la Goebbels, fixar na opinião pública a imagem de um governo corrupto.

Nesses dias jantei com Luís Eduardo, [o então ministro do Planejamento] José Serra, [o vice-presidente] Marco Maciel e o ex-governador do Rio e deputado Moreira Franco (PMDB). Registrei a respeito [refere-se às observações sobre seu dia-a-dia que registrava periodicamente em um gravador ]: “Reavaliamos tudo, é um pouco repetitivo, a questão do pessoal lá do Norte. O Luís Eduardo é favorável, como eu também, que cassem logo o rapaz, eu esqueço… não sei nem o nome dele, um bando realmente de gente muito perigosa.” E acrescentei não saber se era certo ou não ter havido compra de votos regionalmente. Até poderia ter ocorrido — afinal, e isso os acusadores nunca mencionaram e sequer levaram em conta, a reeleição interessava a todos os 27 governadores, como também aos milhares de prefeitos de todo o país —, mas sem qualquer pedido ou interferência do governo.

Uma comissão de sindicância da Câmara presidida pelo deputado Severino Cavalcanti (PPB-PE), corregedor da Casa, ouviu os deputados citados e os governadores do Acre e do Amazonas. Todos negaram participação na venda ou compra de votos. A Folha entregou à comissão uma cópia editada das gravações, suprimindo as intervenções do “Senhor X” e outros trechos aptos a identificá-lo. O perito Ricardo Molina, da Unicamp, atestou a autenticidade dos trechos que examinou e reconheceu a voz dos deputados Ronivon Santiago e João Maia em todos, exceto uma passagem onde faltaram “elementos acústicos suficientes para uma avaliação segura”.

Em 21 de maio, Ronivon Santiago e João Maia renunciaram ao mandato de deputado.

No mesmo dia a comissão de sindicância aprovou relatório do deputado e ex-ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel (PPB-MG) concluindo pela existência de indícios de comportamento incompatível com o decoro parlamentar por parte dos deputados Osmir Lima, Zila Bezerra e Chicão Brígido. “As conversas dos deputados Ronivon Santiago e João Maia (…) contêm ainda elementos de convicção sobre a prática de crime de corrupção, por eles expressamente atribuído aos governadores do Amazonas e do Acre, bem como ao sr. Eládio Cameli [irmão do governador Orleir Cameli], diretor da empresa Marmud Cameli, e, ainda que de maneira imprecisa, ao ministro Sérgio Motta.”

Seguindo as recomendações da comissão, a Câmara abriu processo na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) contra os deputados Osmir Lima, Zila Bezerra e Chicão Brígido por quebra de decoro parlamentar e encaminhou cópia do relatório da sindicância às assembléias legislativas, aos procuradores-gerais de Justiça do Acre e do Amazonas e ao procurador-geral da República.

Sérgio Motta, aludido, indignou-se. Queria logo uma CPI, na ingenuidade de imaginar que, naquelas circunstâncias, da CPI resultasse alguma coisa diferente do que culpar o governo. No dia da publicação da terceira matéria da Folha, 15 de maio, Sérgio divulgou nota contestando as ilações feitas a partir das menções ao seu nome nas gravações. “A transcrição das conversas publicadas não contém nenhum fato real ou acusação concreta. Os fatos citados são absurdos, mentirosos e, diria, surrealistas. No caso da Retransmissora de Televisão (RTV), a permissão foi outorgada em 9 de maio de 1996 [ou seja, um ano antes da votação da emenda da reeleição], como detalhamos a seguir.”

Em 17 de junho, concordei com seu desejo de depor na CCJ. Sérgio negou, com a ênfase que lhe era habitual, qualquer participação na suposta compra de votos. Releu para a comissão os trechos das conversas em que era citado, mostrando que nenhum deles continha nenhuma acusação específica contra ele.

Em nenhum momento nas gravações — é bom relembrar — os deputados diziam que o ministro lhes teria prometido ou pedido a quem quer que fosse para lhes dar dinheiro. Pelas conversas gravadas, as tratativas sobre dinheiro teriam sido com os governadores do Acre e do Amazonas. As menções a “Serjão” — como muitos se referiam a Sérgio Motta —, dando a entender que ele teria alguma combinação com o governador do Amazonas, eram alusões vagas em frases truncadas, entremeadas de expressões como “quem sabe”, “parece”, “eu acho, sei lá”.

Sérgio esclareceu que recebera o deputado João Maia uma vez, em 23 de janeiro, antes da votação da emenda da reeleição na Câmara, na companhia do governador e de outros membros da bancada do Acre, para falar da construção da rodovia BR-364, a grande reivindicação do Estado junto ao governo federal. E concedera audiência ao deputado Ronivon Santiago em 6 de março, após a votação, também na companhia do governador.

Com o governador do Amazonas, informou que tivera somente dois encontros formais, sem nenhuma conversa mais longa. Os membros da CCJ, inclusive os da oposição — é bom ressaltar —, não questionaram especificamente as explicações do ministro. Os oposicionistas limitaram-se a insistir na tese de que só uma CPI poderia investigar o episódio a fundo.

Ronivon Santiago revelou a outros deputados a identidade do interlocutor oculto nas gravações, embora não tenha confirmado essa informação à comissão de sindicância. Seria Narciso Mendes, ex-deputado (PPB-AC), dono de uma emissora de TV no Estado, casado com a deputada Célia Mendes (PFL-AC). Os líderes do governo sabiam da movimentação de Narciso Mendes na Câmara, especialmente junto ao PPB malufista [atual PP], contra a proposta de reeleição. O “Senhor X”, segundo a Folha, levou meses gravando conversas com Ronivon e João Maia. Narciso Mendes, além de prestar um serviço a Maluf, tumultuando a tramitação da emenda da reeleição, teria seus próprios motivos para produzir as gravações. No Acre ele estava em conflito com o governador Orleir Cameli. E tinha uma pendência de vários milhões de reais com a Receita Federal por sonegação de imposto, em relação à qual tentou, sem êxito, conseguir alguma interferência do governo. Segundo depoimento dado a mim pelo secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, apesar dos muitos pedidos para aliviar pesada multa que sofrera — nenhum deles vindo de gente do governo, diga-se —, ela foi mantida pela Receita.

A Câmara não encontrou outras provas que justificassem a cassação dos deputados Osmir Lima, Zila Bezerra e Chicão Brígido. A ação dos governadores do Acre e do Amazonas na suposta compra de votos tampouco se comprovou. Nas conversas gravadas, Ronivon Santiago e João Maia se referem a “atrasados” que teriam a receber do governador Orleir Cameli.

Conhecendo-se os personagens e os costumes políticos da região, é possível que os deputados tenham se aproveitado da oportunidade da votação da emenda da reeleição para saldar suas próprias dívidas, como contam nas gravações.

Nunca, nem por ouvir dizer, falou-se do envolvimento de outros deputados nesse caso. Nem jamais se acusou o ministro Sérgio Motta de abordar deputados ou quem quer que seja com propostas de suborno.

Tudo o que existe para sustentar o envolvimento de Sérgio, um homem honrado, são alusões desconexas nas conversas entre essas três figuras —Ronivon, João Maia e Narciso Mendes ou “Senhor X” — gravadas e editadas nas condições descritas acima.

A despeito de o suposto autor da vaga denúncia não ser pessoa de respeito, parte da imprensa manteve no ar o clima de suspeição, sem nunca endossar abertamente a acusação. Na lógica política, pouco importava o descrédito do acusador. Havia interesse em desacreditar o governo. Mesmo o deputado Almino Affonso (SP), à época em meu partido, o PSDB, disse que era necessário “lancetar o tumor”, mas que não existiam condições para isso. Não se referiu, porém, à motivação política óbvia de uma CPI, como se o governo é que não tivesse interesse em apurar as coisas. Em suma, o governo estava no pelourinho e daí por diante, a cada crise, lá vinham as oposições com a lengalenga da compra de votos, apesar do disparate.

Tendo o governo maioria esmagadora da opinião e dos votos no Congresso — que, torno a lembrar, também refletia o enorme interesse de governadores e prefeitos na reeleição, algo sempre deixado de lado por meus críticos —, se não fosse por motivos éticos e de estrita obediência à lei, até por mera desnecessidade jamais iríamos nos meter na desventura e no pântano de comprar votos.

(Vale lembrar que, no ano seguinte, Jorge Viana, do PT, com apoio do PSDB, ganhou a eleição para governador no Acre. Em novembro de 2000, ele denunciou a participação de Narciso Mendes e do deputado federal José Aleksandro, do Partido Social Liberal (PSL), num plano para matá-lo. O plano envolveria o ex-deputado Hildebrando Paschoal, cassado e cumprindo pena desde 1992 por homicídio e narcotráfico.)

Se houve compra e venda de votos, ela se deu no plano regional, envolvendo personagens e práticas da velha política que o PSDB, com respaldo de meu governo, ajudou o PT a derrotar no Acre.

Fonte: Ricardo Setti - Veja.com

Comentários

  1. Serginho/Sampa24/6/11 17:24

    Meu, conselho, você tem que diminuir o tamanho do banner da sua página. Ela fica desajusta em tamanhos menores de definição de vídeo.

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  2. Serginho,
    Obrigado pela dica. Tentarei resolver isto.
    Welbi Maia

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