Trem-bala: o disparate terceiro-mundista - Artigo de Aloysio Nunes


“O projeto é produto ou do delírio de burocratas que perderam a noção da realidade ou de interesses escusos de grupos empresariais ligados a partidos da base governista”


O governo federal anunciou um corte de R$ 50 bilhões no orçamento da União para 2011. Alega, para isso, a necessidade de conter a inflação, impedir a alta de juros e a interrupção dos serviços essenciais ao dia a dia da população, que depende das políticas públicas – como, por exemplo, na área da saúde.

Como explicar tal corte, que com certeza vai impactar o ritmo de crescimento, aniquilar empregos e inviabilizar a ampliação da infraestrutura nacional, se a presidente da República insiste em manter projetos mal estudados e de utilidades questionáveis. O exemplo mais eloquente desse tipo de projeto é o trem de alta velocidade, o chamado trem-bala, custoso e sofisticado veículo, capaz de desenvolver até 350 km por hora, na ligação entre São Paulo e Rio de Janeiro.

Tal projeto vai consumir R$ 35 bilhões, vindo a maior parte desse dinheiro dos cofres públicos, sem que se aumente um único quilômetro da malha ferroviária convencional brasileira, sem que nenhuma de nossas capitais receba um único centavo a mais para implantação de metrôs e sem que se construa um único novo quilômetro de rodovia, novos portos e aeroportos.

Quando foi anunciado pelo governo federal, o trem-bala era um projeto a ser bancado pela iniciativa privada. Portanto, uma aventura particular, sem ônus para o Estado e, por consequência, sem retirar o dinheiro público destinado às necessidades básicas da população, da ampliação da infraestrutura e avanço do nosso Produto Interno Bruto (PIB), sedento por investimentos que mantenham nosso ritmo de crescimento, por criação de novas vagas de trabalho e pela qualificação profissional da nossa população.

Hoje se sabe que o projeto terá R$ 20 bilhões emprestados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com juros muito abaixo da taxa cobrada pelo banco em investimentos ao setor produtivo.

Outros R$ 4 bilhões dos cofres públicos vão ser destinados à empresa que vai gerenciar o trem-bala, delírio de burocratas que perderam a noção da realidade. Ou de interesses escusos de grupos empresariais ligados a partidos da base governista.

E mais: anuncia-se que se o projeto “falhar”, se faltar demanda, o governo vai subsidiar ainda mais os juros que hoje já são de pai para filho. Ou seja: o trem-bala vai ser construído apenas para o benefício de poucos, que se beneficiarão em detrimento do restante do país. A falta da democratização desse dinheiro atingirá em cheio a esmagadora maioria dos empresários e cidadãos comuns.

Necessitamos de investimentos na malha ferroviária comum. De ampliação de nossa matriz de transporte, com ampliação de portos, aeroportos e de hidrovias, a forma mais barata de transitar nossas riquezas. Hoje, temos apenas uma hidrovia no rio Tietê iniciada pelo ex-governador paulista Franco Montoro, no início da década de 80 do século passado, e concluída por Orestes Quércia.

Ela funciona bem, promove desenvolvimento e economia para a indústria e o agronegócio, o suficiente para que burocratas e setores políticos que não se beneficiam com esse tipo de transporte fazerem questão de esquecer que somos um dos países com os maiores rios navegáveis do mundo, o que nos permitiria ter uma das maiores malhas hidroviárias do planeta. Não é necessário fazer as contas para descobrir o tamanho da economia em fretes e, em contrapartida, dos benefícios, inclusive para o meio ambiente.

Hoje, temos apenas 28 mil quilômetros de malha ferroviária espalhada no nosso imenso território. Esse número é nitidamente insuficiente, considerando-se o tamanho do país e das necessidades de locomoção.

Para se ter uma idéia do quanto esse projeto é um delírio, basta lembrar que nos últimos 11 anos não investimos em ferrovias (dinheiro público e privado) nem 50% do que está previsto investir no trem-bala. Esse dinheiro é o dobro dos investimentos que fizemos no mesmo período em portos e aeroportos.

Onde estão o rigor e a austeridade pregados pela presidente Dilma Rousseff quando anunciou o corte orçamentário? Ela justifica o corte de R$ 50 bilhões dizendo que precisamos ser responsáveis. Ora, por esse raciocínio o governo passado, principalmente em 2010, foi irresponsável. Se o corte é para evitar o aumento da inflação e dos juros, manter a estabilidade econômica, o projeto do trem-bala desmente a necessidade do arrocho.

A já existente malha ferroviária necessita de manutenção, de ser refeita, repensada. Centenas de cidades têm seu crescimento impedido pelas ferrovias ultrapassadas, cortando os municípios ao meio, prejudicando o trânsito e o zoneamento urbano.

Nossas ferrovias precisam se voltar ao cidadão comum. Os mais pobres e aqueles que vivem abaixo da linha da miséria, sem poder de compra para passagens de ônibus, carros e aviões, vivem segregados em suas cidades, sem condições de se locomover, visitar parentes, ou ter acesso ao lazer. O trem comum é o único meio de transporte que permite a essas populações o mesmo direito constitucional de ir e vir que outros cidadãos usufruem.

Os números do próprio governo apontam para o disparate dessa iniciativa. O custo estimado para o trem-bala é de R$ 66 milhões por km, enquanto o do trem convencional é de R$ 2 milhões por km – 33 vezes a menos.

O dinheiro do trem-bala daria para resolver esse problema de ferrovias em centenas de localidades Brasil afora. Sem falar em investimento em rodovias necessárias em rincões esquecidos. Levamos mais de um século para fazer uma Transnordestina, rodovia que serve a quase dez estados e a milhões de brasileiros que sempre foram relegados a um segundo plano. Levantamentos indicam que o valor destinado para o trem-bala é suficiente para construir oito Transnordestinas. Duas hidroelétricas de Belo Monte. Onde está a racionalidade desse projeto?

Beneficiar um pequeno grupo de passageiros entre o Rio e São Paulo, onde já existe a melhor infraestrutura do país? O que estaremos fazendo é apenas nos afundar no endividamento público e o remédio para consertar o estrago será muito amargo para a sociedade brasileira, para o país.

Essa aberração, transformada em formulação de política pública, não caminha a passos largos porque o próprio Ministério Público Federal entrou na linha pedindo estudos aprofundados. O Ministério do Planejamento tem equipe técnica competente para evitar o desastre. Vai a presidente Dilma, premiada com uma situação fiscal grave, herdada do seu antecessor, e, em última análise, dela mesma, persistir no disparate?


* Senador pelo PSDB-SP, é bacharel em Direito e em Economia Política. Fez mestrado em Ciência Política na Universidade de Paris, na qual também atuou como professor. Em São Paulo, foi deputado estadual, vice-governador do estado e exerceu vários cargos na administração municipal e estadual. Também foi deputado federal e ministro durante o governo Fernando Henrique (quando ocupou a Secretaria-Geral da Presidência da República e o Ministério da Justiça). Em outubro de 2010, tornou-se o senador mais votado da história do país ao receber mais de 11 milhões de votos para o cargo.


Fonte: Congresso em Foco

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