Sobre salário mínimo, Cazuza e o general Figueiredo




Senador de primeiro mandato, Raldolfe Rodrigues (PSOL-AP), 38 anos, recorreu a Cazuza para resumir a sessão da noite passada, no Senado. “Eu vejo o futuro repetir o passado”, discursou Raldolfe, da tribuna. “Eu vejo um museu de grandes novidades. O tempo não para”.

A estrofe anterior da peça que Cazuza fez com Arnaldo Brandão incluía versos mais ásperos: “Tua piscina tá cheia de ratos. Tuas ideias não correspondem aos fatos”. Raldolfe, porém, preferiu pular esse pedaço da música. Ateve-se à referência temporal –o futuro ecoando o passado num museu de novidades.

Nada poderia ter soado mais fiel. A aprovação do salário mínimo de R$ 545 resultou de um enredo em que se misturaram o déjà vu e o vice-versa. Para justificar o mínimo maior ou o menor, esgrimiram-se os mesmos velhos argumentos. Com uma diferença: inverteram-se os papéis.

Petistas e agregados argumentaram: um salário mínimo menos constrangedor desarrumaria as contas públicas, alimentaria a inflação, comprometeria a Previdência e provavelmente desmancharia o penteado de Dilma Rousseff.

Sob vaias de uma galeria ornada pela ausência da CUT, acusaram: quem prega um salário mínimo maior o faz por demagogia e oportunismo político. Sérios e sensatos são os que defendem o reajuste possível, mesmo reconhecendo que é pouco. Em 2012, será melhor.

Na trincheira oposta, a neoesquerda irresponsável: DEM e PSDB. Um agarrado ao mínimo de R$ 560. Outro, aferrado aos R$ 600. Raldolfe, adepto dos R$ 700, leu um discurso feito em 11 de maio de 2000, na Câmara. Corria o governo Fernando Henrique. O ex-PT ainda era vivo.

Discutia-se o reajuste do mínimo. O ex-petismo se batia por R$ 175. Raldonfe reavivou o discurso sem mencionar o nome do autor. É mentira dizer que a Previdência não suporta o aumento do mínimo, dizia o ex-petista, presente à sessão.

Se o governo baixasse a taxa de juros em 1% ou 2%, pagaria o mínimo maior, afirmava o ex-oposicionista, agora governista. José Agripino Maia (DEM-RN) disse coisa muito parecida: se o Copom deixar de aumentar os juros em 0,25 ponto percentual, o governo poupa R$ 4 bilhões.

Com esse dinheiro, daria para cobrir o extra de R$ 15 embutido no mínimo de R$ 560. “O trabalhador merece decência”, disse, sob aplausos das galerias. E Raldolfe: “Os que antes defendiam o contrário agora defendem o reajuste. Os que defendidam o reajuste hoje defendem o contrário”.

Ex-companheiro de Randolfe no movimento sindical, Lindberg Farias (PT-RJ), outro senador novato, foi um dos mais efusivos defensores das teses do neo-PT. A cerca altura disse que PSDB e DEM comprometem com seu oportunismo a principal bandeira da Era Itamar-FHC: a estabilidade econômica.

No papel de anti-Agripino, Lindberg desceu da tribuna sob vaias companheiras da Força Sindical. Uma central nascida sobre Fernando Collor (PTB-AL), o presidente que Lindberg ajudara a derrubar e hoje é seu “aliado” no Senado. O tempo não para.

Terminada a votação, ficou entendido que, assim como o país de FHC, o Brasil de Dilma não suportaria um mínimo acima de certo ridículo. A viabilidade da nação ainda depende do martírio perpétuo de uma parte da sua população –algo como 47 milhões brasileiros.

A certa altura, Itamar Franco (PPS-MG) borrifou ironia na direção do relator Romero Jucá. Insinuou o obvio: os R$ 545 não cobrem o mínimo da Constituição. Evocou o general João Figueiredo. "Uma vez perguntaram para um presidente o que faria com um salário mínimo, sabe o que respondeu?"

E Jucá: "Que daria um tiro na cabeça". Em verdade, Figueiredo soou em timbre mais chucro. “Eu dava um tiro no coco”, disse, em resposta a um menino de 10 anos. Na época de Figueiredo, a ditadura baixava o salário mínimo por meio de decreto-lei, sem a necessidade votações no Congresso.

Sob Dilma, vai-se reviver essa fase. O projeto enviado à sanção presidencial delega à presidente a atribuição de fixar o mínimo por decreto de 2012 a 2015. Versados nas artes do Direito, o oposicionista Demóstenes Torres (DEM-GO) e o governista Pedro Taques (PDT-MT) uniram-se na condenação ao procedimento.

“É inconstitucional”, disse Taques. “O Congresso está se agachando para o Executivo”, ecoou Demóstenes. “E quem agacha muito mostra o que não deve”. Reza a Constituição, realçaram ambos, que o mínimo só pode ser fixado por lei.

Aécio Neves (PSDB) lembrou: a exigência foi inscrita no texto constitucional, em 1988, com o decisivo apoio de Paulo Paim (PT-RS). À época um ativo defensor do fim do decreto-lei, herança da ditadura, Paim é agora ferrenho defensor dos futuros decretos de Dilma. Importam as regras, não a forma, diz ele. 

“Cada senador custa R$ 41 milhões por ano”, contabilizou Demóstenes. “O Orçamento anual do Senado é de R$ 3,3 bilhões. Vamos vir pra cá pra não trabalhar? Onde vamos parar? Vamos transformar o Brasil em Venezuela?”

Munida de ferramenta análoga à que era usada pela ditadra que combateu, Dilma reforçará Cazuza: “Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades. O tempo não para".

Fonte: Josias de Souza - Folha.com

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