O imbróglio está no ar: a vaga de um candidato eleito
pertence ao partido. Portanto, se ele renunciar ao mandato ou for
cassado, por abandono da legenda a que pertence, sua vaga deverá ser
preenchida pelo primeiro suplente de seu partido. Se este primeiro
suplente for apenas o quinto suplente de uma coligação integrada por,
digamos, cinco siglas, continuará ele a ter direito à vaga. Esse
entendimento do STF, tomado em dezembro em resposta a um mandado de
segurança impetrado pelo PMDB, está causando alvoroço na frente política
em decorrência da alteração nas planilhas partidárias, neste momento em
que mais de 40 parlamentares foram convocados para compor o
secretariado dos Estados. Apesar de abrigar, à primeira vista, sólida
fundamentação, eis que candidato não tem vida política fora de uma sigla
e nenhuma candidatura se torna viável sem desfraldar a bandeira
partidária, a decisão do Supremo ganha questionamentos bastante
consistentes em sentido contrário. Ou seja, os fundamentos em favor da
tese de que a vaga deve ser ocupada pelo primeiro suplente da coligação,
e não do partido, são vigorosos e merecem consideração.
É oportuno lembrar, primeiro, que partidos políticos representam
parcelas do pensamento social. Em tese, os eleitos devem levar para os
foros que abrigam o mandato popular as teses e as demandas expressas
pelos contingentes que os elegeram. E o que significam coligações? Elas
são facultadas pelo artigo 6.º da Lei 9.504/97, que permite aos
partidos, dentro de uma mesma circunscrição, selar uma união para a
eleição majoritária, proporcional ou para ambas. Trata-se de pessoa
jurídica pro tempore. Ora, ao se juntarem numa coligação, as siglas
assumem na prática as prerrogativas e obrigações de um partido político
para efeitos eleitorais, somando tempos a que têm direito no rádio e na
TV, para efeito de maior exposição midiática, processo que culmina com a
soma dos votos alcançados pelo conjunto. Urge esclarecer que para a
eleição majoritária as coligações têm como foco o acréscimo de tempo na
propaganda eleitoral gratuita, e para a eleição proporcional o interesse
maior está no cômputo geral dos votos.
É evidente a forte relação de causa e efeito que se extrai da
coligação eleitoral. Pelo nosso sistema, as vagas são determinadas a
partir do chamado quociente eleitoral, que resulta do número de votos
válidos pelo número de vagas a preencher em cada Estado. Essa conta -
soma dos votos nominais e de legenda - é feita para cada sigla e para as
coligações. No caso destas, os candidatos mais votados,
independentemente do partido a que estejam filiados, encabeçarão a lista
para preenchimento das vagas. Fechando-se o circuito parlamentar de
cada Estado, atendendo sempre à ordem decrescente de votação e em
consonância com o quociente eleitoral, forma-se, a seguir, a lista dos
suplentes, que são convocados a ocupar o cargo em casos de impedimento,
renúncia ou morte do titular.
Neste ponto, chega-se à questão factual que se pinça da decisão (de
certa forma surpreendente) do STF. A ordem de suplência não se vincula
mais à votação nominal obtida pelos candidatos de uma coligação, e sim
ao partido político a que ele pertence. Vale esclarecer que a Corte
concedeu liminar acolhendo a tese de que, com a renúncia de um
parlamentar do PMDB, o deputado Natan Donadon (RO), a vaga deveria ser
preenchida por suplente do mesmo partido. Em seu mandado de segurança, o
partido alegou que o primeiro suplente, Agnaldo Muniz, se desfiliara do
PP, que à época compunha a coligação. Emergiu a interrogação: a decisão
do STF valeria para todos os casos? Independentemente do fato de ter
deixado ou não um partido que fez parte de uma coligação, o primeiro
suplente deve ceder a vaga a outro, do partido que abriu a vaga? Ricardo
Vita Porto, experimentado advogado eleitoral com visão discordante do
STF, argumenta que a Corte deveria ter permitido a posse do primeiro
suplente da coligação. Afinal, esse foi o veredicto das urnas. Se este
tiver cometido infidelidade, o ator partidário que se sentir preterido
deve procurar seu direito na Justiça Eleitoral. Essa é a liturgia
sugerida pela norma.
Se o entendimento é que a decisão do Supremo define os horizontes
para todos os casos de suplência, fortes argumentos acabam indo para o
baú. Vejamos. A coligação, embora adquira caráter temporário,
desfazendo-se logo após o processo eleitoral, assume status de partido
político. As consequências geradas por ela devem perdurar no tempo, eis
que os parceiros foram legitimados pelo processo eleitoral. Portanto, os
eleitos por uma coligação também assumem, à semelhança dos eleitos por
um partido, escopos e ideários expressos pelas siglas que a integram.
Dir-se-ia, até, que representariam parcelas mais plurais do pensamento
social. Portanto, sob o prisma doutrinário, alicerce da democracia
partidária, não há razão para questionar a identidade dos perfis eleitos
por uma coligação. Como candidatos, apresentaram-se ao eleitor,
expuseram ideias, comprometeram-se com demandas. Cada um ficou
chancelado com a marca (identidade das parcelas eleitorais) e o tamanho
(quantidade) dos votos. Cassar essa condição, desmanchar o jogo depois
de jogado, é simplesmente maltratar as regras de nossa incipiente
democracia. Ou seria esse mais um exemplo de judicialização da política?
Se a confusão, que mais parece um angu de caroço, começa na mesa da
coligação proporcional, por que, então, não extingui-la de nossos
códigos? O fato é que privilegiar um suplente com votação bem inferior à
de outros é desprezar a vontade do eleitor. Cabe ao Poder Judiciário
apreciar os vazios constitucionais e preenchê-los com lições de Direito
e, sobretudo, de bom senso. Como a questão foi tratada nos termos de uma
liminar, a tomada de decisão não é, portanto, definitiva, pode-se
prever um desfecho coroado pela tradição de respeito à vontade popular e
ao espírito do tempo.
JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP, CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO TWITTER: @GAUDTORQUATO
GAUDÊNCIO TORQUATO - O Estado de S.Paulo
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