José Nêumanne
Os números assustadores da tragédia provocada pelas
enxurradas que se seguiram aos temporais na serra fluminense (o dobro
dos mortos das similares em 1967, quando a área atingida ficou restrita
apenas a Petrópolis) fazem emergir da lama que deslizou montanha abaixo,
destruindo tudo e enlutando famílias, constatações e reflexões que,
mesmo inúteis e inócuas, não podem deixar de fluir.
A primeira pergunta sem resposta é a que estabelece uma conexão entre
a ameaça à camada de ozônio pelo aquecimento global e fenômenos
meteorológicos como esses. Chove desde que o mundo é mundo e chuvas como
as que desabaram sobre a formosa área acontecem desde o tempo em que o
calor das fogueiras de nossos ancestrais caçadores certamente não
ameaçava a camada de ozônio nem alterava o rumo ou o volume de correntes
marítimas e tampouco causava tempestades. Não dá para garantir nem para
negar que aguaceiros de tal porte possam ter caído no tempo das
cavernas e desabrigado algumas famílias de habitantes primitivos
daquelas plagas. Mas não se podem comparar esses eventos na Pré-História
com este num planeta superpovoado, onde aquele privilegiado conjunto de
morros e vales é disputado por qualquer apreciador de uma bela vista - o
pobretão da favela ou o ricaço capaz de construir sua mansão na
encosta. Para o primeiro vale a advertência que começou a ser feita
desde que os refugiados da Guerra de Canudos, não tendo onde morar,
fincaram suas choças nos morros que ornam a Baía de Guanabara, que
encantou Cole Porter, e chamaram seus arruados de "favelas", em
homenagem a um arbusto do sertão.
É claro que a ocupação de áreas de risco pelos carentes de moradia é
um drama que se amplia na proporção em que aumentam as famílias que não
têm onde morar e mínguam as habitações que elas podem adquirir ou
construir. Em metrópoles como Rio e São Paulo, restam-lhe poucas
alternativas às encostas sobre as quais a ganância da indústria
imobiliária ainda não depositou suas ambições de enriquecimento. Em
regiões aprazíveis e próximas de um grande centro, caso da preferida
pela família imperial para se refugiar da canícula litorânea, não há
escolha para os pobres de Jó que improvisam seus tetos ou a burguesia
endinheirada em busca de paz, conforto e ar puro. Em Petrópolis,
Teresópolis, Nova Friburgo e adjacências, barracos ou palacetes não
podem ser construídos em planuras, porque planuras não há. Há, sim,
montanhas que sobem para o céu e descem para o vale. E vales que,
debaixo das encostas, aguentam o peso do lodaçal que desliza quando a
vegetação não consegue conter o desbarrancamento e desce a avalanche.
Sob o peso monumental dessa lama desmoronam barracos de lata e
sólidas construções centenárias. Reclamar da ocupação indiscriminada de
mananciais e áreas de risco com a cumplicidade da politicagem demagógica
é chover no molhado, mas necessário. Porque não há tragédia coletiva
que mobilize um homem público brasileiro em posto de mando a desafiar os
carimbadores de fatos consumados e os grileiros da boa-fé do populacho
sem teto.
No caso da serra fluminense, o buraco fica bem mais embaixo e o
lamaçal vem de muito mais acima. Esta tragédia de proporções ainda não
totalmente conhecidas mostra que não há áreas sem risco no território
atingido. A serra só não é arriscada em sítios selvagens onde não
existam prédios, pessoas, bens ou animais. Essa evidência não inutiliza a
necessidade da responsabilização com nome, endereço, cargo e eventual
pena em caso de culpa para os homens públicos que compram seus mandatos
ao custo da mortandade nas tragédias das chuvas de verão. Mas torna
relativa a justificativa única da permissão de construir em lugar
impróprio, pois ali, como esta chuva mostrou, nenhum é apropriado.
Então, que fazer? Adquirir aparelhos de previsão meteorológica para
permitir que cidades sejam evacuadas antes que o céu desabe sobre as
montanhas? A tecnologia salva vidas, mas seu poder de fazê-lo é
limitado. A constatação sazonal de que as autoridades locais foram
avisadas pelos técnicos de que choveria é aleivosa, porque não há
prefeito capaz de evacuar uma cidade do tamanho de Petrópolis cada vez
que a meteorologia previr não o dilúvio universal, mas "chuvas de
moderadas a fortes". Se muitos habitantes da região se recusam a deixar
casas dependuradas no abismo e isoladas pela lama, como imaginar que
alguém, de sã consciência, possa convencer almas contadas aos milhares a
abandonarem seus lares? E irem, aliás, para onde? Para o sambódromo?
Para o Maracanã? Ora, essa!
O que revolta é ler a promessa de Dilma agora, que, feita por Lula há
cinco anos, nunca foi cumprida, de instalar um infalível sistema de
alerta para prevenir tragédias como esta. Pois se trata de marketing
improvisado que escarnece da dor das vítimas. E saber que aquela região
não dispõe de um plano B similar ao treinamento que os bombeiros fazem
para prevenir incêndios em prédios. Pior: União, Estados e municípios
apelidam de defesa civil algo que não defende ninguém de nada, e sempre
termina sobrando para militares destreinados que correm feito baratas
tontas de um lado para outro, ajudando heroicamente alguns, mas sem
organização capaz de promover uma eventual evacuação improvável ou de
socorrer as vítimas do dilúvio anunciado.
O Estado brasileiro é incompetente para prevenir e para remediar
porque não estuda, não trabalha, não treina e não aprende com as
tragédias pretéritas para evitar que as futuras sejam ainda maiores.
Militares e civis limitam-se a garantir a própria impunidade no discurso
vago e impessoal, repetido e pluripartidário dos mandatários de
plantão. É uma situação vergonhosa que só poderia ser amenizada se esses
maganões fossem identificados e punidos na forma da lei. Mas como
fazê-lo, se são eles que fazem as leis?
JORNALISTA E ESCRITOR, É EDITORIALISTA DO "JORNAL DA TARDE"
Fonte: O Estado S.Paulo
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