O sistema energético brasileiro lembra, na sua operação,
uma empresa de transporte que leva passageiros de um lugar para outro
sem perguntar os motivos por que eles viajam nem o que vão fazer quando
chegarem ao seu destino final. Todas as empresas, sejam do setor
elétrico ou de petróleo, se colocam na posição de vendedoras de energia,
quer sejam estatais ou privadas: são supridoras de energia e seu
faturamento é tanto maior quanto mais venderem, mesmo que os usuários a
desperdicem.
Sucede, contudo, que energia é um ingrediente tão essencial da
civilização moderna que o poder público tem a responsabilidade de
garantir que ela esteja disponível o tempo todo, suprindo o papel das
empresas privadas quando elas não forem capazes de fazê-lo. É por essa
razão que, quando se trata de construir usinas elétricas, perfurar poços
de petróleo ou construir reatores nucleares, faz sentido perguntar como
essa energia vai ser usada: é preciso olhar o problema pelo lado da
demanda, isto é, dos consumidores.
Esse tipo de pergunta não era feito no passado porque energia era
abundante e barata e representava uma fração pequena das despesas dos
consumidores residenciais ou industriais. Mas a situação mudou a partir
de 1973, com a "crise do petróleo", quando o seu custo aumentou
drasticamente. Por essa razão, nos países industrializados - logo após a
crise de 73 - foram introduzidas medidas para racionalizar o uso da
energia, que tiveram grande sucesso. Só para dar um exemplo, o consumo
de energia na Europa seria 50% maior do que é atualmente caso tais
medidas não tivessem sido adotadas. Parte desses ganhos se deve à maior
eficiência dos equipamentos que usam energia, como geladeiras e
eletrodomésticos em geral, automóveis, aquecimento residencial e outros,
além de a mudanças estruturais da sociedade, em que os serviços
adquiram maior importância.
No Brasil, contudo, sucessivos governos têm a ideia fixa e atrasada
de que o consumo de energia tem de crescer junto com o produto bruto
nacional (PIB), ou até mais rapidamente do que este, o que simplesmente
não é verdade, dependendo do momento histórico. Quando um país está
despertando para a industrialização, as obras de infraestrutura consomem
muita energia, sendo natural que seu consumo aumente junto com o
crescimento da economia (ou até mais que ele). Essa era a situação no
Brasil há 50 anos. Hoje já existe um parque industrial sofisticado no
País, e com o desenvolvimento da informática pode-se fazer muito mais
com menos energia. Essa é a razão por que é possível fazer o PIB crescer
mais rapidamente do que o consumo de energia, como está ocorrendo em
muitos países. Não se trata de austeridade ou de se privar da utilização
de energia, mas de racionalizar o seu uso.
No caso da eletricidade, em particular, São Paulo consome cerca de um
terço de toda a eletricidade produzida no Brasil, e cerca de metade
dela é "importada" de Itaipu e do resto do sistema interligado. É para
suprir essa demanda que se justifica, em boa parte, a construção de
grandes usinas hidrelétricas na Amazônia, como Belo Monte e outras, que
vão contribuir para criar problemas socioambientais difíceis de
equacionar. Portanto, São Paulo, com seu enorme consumo e seu poder de
compra, pode influir no que se pretende fazer em termos de energia
elétrica no restante do País.
Só para dar um exemplo, o Estado de São Paulo, no governo Alckmin, há
seis anos, percebeu que uma maneira de reduzir o desmatamento na
Amazônia era exigir que a madeira dessa região que entrasse em
território paulista não se originasse de desmatamentos ilegais. Esse
procedimento teve algum sucesso e outros do mesmo tipo foram
introduzidos para evitar o consumo de carne de rebanhos "ilegais" que
estivessem contribuindo para a destruição da floresta amazônica. O
acordo assinado pelos grandes frigoríficos com o Greenpeace teve o mesmo
objetivo.
Usando a mesma lógica, reduzir a "importação" de energia hidrelétrica
gerada na Amazônia em São Paulo contribuiria para diminuir a
necessidade de grandes obras naquela região. A redução da "importação"
poderia ser feita de duas maneiras:
Aumentando a geração de eletricidade nas usinas de cana-de-açúcar do
Estado, queimando o bagaço em caldeiras mais eficientes - o BNDES tem
linhas especiais de financiamento para encorajar essas práticas; isso
está ocorrendo nas usinas novas, mas há ainda muito a fazer nas usinas
antigas que usam caldeiras de baixa pressão;
e lançando um grande programa de racionalização do uso de energia
elétrica no Estado, sobretudo nos setores eletrointensivos, o que seria
coerente com a estratégia de modernização da indústria paulista
resultante da Lei de Mudanças Climáticas aprovada no governo José Serra,
que tem por objetivo reduzir as emissões de carbono até 2020.
Os instrumentos para tal já existem na área federal, porque o
Congresso Nacional, em 2001, por iniciativa do governo Fernando Henrique
Cardoso, aprovou uma lei - que só foi regulamentada já no final do
atual governo, que, portanto, desperdiçou uma grande oportunidade -
autorizando o Executivo a atuar na demanda de energia, proibindo a
comercialização de produtos que não tenham um mínimo de eficiência
energética. Esse método de atuar na demanda teve enorme sucesso na
Califórnia, onde o consumo de eletricidade per capita é quase 50% menor
do que nos Estados Unidos como um todo. No Brasil, até agora, apenas
geladeiras de baixa eficiência foram proibidas, mas um grande número de
outras ações no mesmo sentido poderiam ser tomadas sem necessidade de
mais legislação.
É o caso de pensar seriamente nessas opções no Estado de São Paulo e
esclarecer o governo federal sobre a necessidade de reexaminar qual a
necessidade real de obras de grande porte que poderão ter sérias
consequências ambientais.
José Goldemberg - PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)
Fonte: O Estado de S.Paulo
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