Diálogos entre autoridades revelam que o Ministério da Justiça, o mais antigo e tradicional da República, recebeu e rechaçou pedidos de produção de dossiês contra adversários
(Montagem Sambaphoto/Folhapress)
RELAÇÕES PERIGOSAS: As conversas às quais VEJA teve acesso
mostram que o braço direito do presidente Lula, Gilberto Carvalho, e a
candidata à Presidência Dilma Rousseff tentaram usar o Ministério da
Justiça para executar “tarefas absurdas”
Estamos a menos de uma semana das eleições e, como escreveu o
correspondente Stuart Grudgings, da agência noticiosa Reuters, políticos
e jornalistas correrão às bancas mais próximas para ver se será esta a
edição de VEJA que vai abalar a liderança de Dilma Rousseff nas
pesquisas eleitorais. Embora a análise do funcionário da Reuters
demonstre um total desconhecimento do que seja jornalismo, atividade em
que os fatos fazem as notícias e não o contrário, ele acertou em seu
diagnóstico a respeito da ansiedade que as capas de VEJA provocam no
meio político. A reportagem que se vai ler a seguir não foge à regra.
Ela revela, talvez da maneira mais clara até hoje, o tipo de governo
produzido pela mentalidade petista de se apossar do estado, aparelhá-lo e
usá-lo em seu benefício partidário. VEJA já havia demonstrado nas
reportagens “O polvo no poder” e “A alegria do polvo” como a Casa Civil
fora transformada em um balcão de negócios, em que maços de dinheiro
vivo apareciam nas gavetas de escritórios a poucos metros da sala do
presidente da República. A presente reportagem relata as tentativas
ousadas de petistas de alto coturno de conspurcar um dos mais antigos e
venerandos ministérios da República, o da Justiça.
“Não aguento mais receber pedidos da Dilma e do Gilberto Carvalho
para fazer dossiês. (...) Eu quase fui preso como um dos aloprados.”
Pedro Abramovay, atual secretário nacional de Justiça, em conversa com seu antecessor, Romeu Tuma Júnior
Pedro Abramovay, atual secretário nacional de Justiça, em conversa com seu antecessor, Romeu Tuma Júnior
É conhecido o desprezo que o PT nutre pelas instituições republicanas,
mas o que se tentou no Ministério da Justiça, criado em 1822 por dom
Pedro I, ultrapassa todas as fronteiras da decência. Em quase 200 anos
de história, o ministério foi chefiado por homens da estatura de Rui
Barbosa, Tancredo Neves e quatro futuros presidentes da República. O PT
viu na tradicional instituição apenas mais um aparelho a serviço de seu
projeto de poder. Como ensina Franklin Martins, ministro da Supressão da
Verdade, “às favas com a ética” quando ela interfere nos interesses
políticos e partidários dos atuais donos do poder. VEJA teve acesso a
conversas entre autoridades da pasta que revelam a dimensão do desprezo
petista pelas instituições. Os diálogos mostram essas autoridades
incomodadas com a natureza dos pedidos que vinham recebendo do Palácio
do Planalto. Pelo que é falado, não se pode deduzir que o Ministério da
Justiça, ao qual se subordina a Polícia Federal, cedeu integralmente às
descabidas investidas palacianas. “Não aguento mais receber pedidos da
Dilma e do Gilberto Carvalho para fazer dossiês. (...) Eu quase
fui preso como um dos aloprados”, disse Pedro Abramovay, secretário
nacional de Justiça, em conversa com seu antecessor, Romeu Tuma Júnior.
Abramovay é considerado um servidor público exemplar, um “diamante da
República”, como a ele se referiu um ex-ministro. Aos 30 anos, chegou ao
Ministério da Justiça no início do governo Lula pelas mãos do
ex-ministro Márcio Thomaz Bastos. A frase dele pode confirmar essa boa
reputação, caso sua “canseira” tenha se limitado a receber pedidos e não
a atender a eles. De toda forma, deveria ter denunciado as ordens
impertinentes e nada republicanas de “produzir dossiês”.
Mesmo um alto funcionário com excelente imagem não pode ficar ao mesmo
tempo com a esmola e o santo. Em algumas passagens da conversa,
Abramovay se mostra assustado diante das pressões externas e diz que
pensa em deixar o governo. Não deixou. Existem momentos em que é preciso
escolher. Antes de chegar ao ministério, ele trabalhou no gabinete da
ex-prefeita Marta Suplicy, na liderança do PT no Senado e com o senador
Aloizio Mercadante. Vem dessa etapa da carreira a explicação para a
parte da frase em que ele diz “quase fui preso como um dos aloprados”. A
frase nos leva de volta à campanha eleitoral de 2006, quando petistas
foram presos em um hotel ao tentar comprar um dossiê falso contra José
Serra. A seu interlocutor, Abramovay sugere ter participado do episódio e
se arrependido, a ponto de temer pedidos semelhantes vindos agora do
Palácio do Planalto. Ele disse que quase foi preso na época do escândalo
e que, por isso, teve de se esconder para evitar problemas. “Deu ‘bolo’
a história do dossiê”, comenta. Em pelo menos três ocasiões, Abramovay
afirma que não está disposto a novamente agir de forma oficiosa. E
justificou: “...os caras são irresponsáveis”.
“O Pedro reclamou várias vezes que estava preocupado com as missões
que recebia do Planalto. Ele realmente me disse que recebia pedidos da
Dilma e do Gilberto para levantar coisas contra quem atravessava o
caminho do governo.”
Romeu Tuma Junior, ex-secretário nacional de Justiça
Romeu Tuma Junior, ex-secretário nacional de Justiça
Os diálogos aos quais a reportagem teve acesso foram gravados
legalmente e periciados para afastar a hipótese de manipulação. As
ordens emanam do coração do governo — do chefe de gabinete da
Presidência, Gilberto Carvalho, e da candidata a presidente, Dilma
Rousseff. A conversa mais longa durou cinquenta minutos e aconteceu em
janeiro deste ano, no gabinete do então secretário nacional de Justiça e
antecessor de Abramovay no cargo, Romeu Tuma Júnior. Os interlocutores
discutem a sucessão do ex-ministro Tarso Genro. Ao comentar sobre o
próprio futuro, Abramovay revela o desejo de trabalhar na ONU. Em tom de
desabafo, o advogado afirmava que já não conseguia conviver com a
pressão. Segundo ele, a situação só ia piorar com a nomeação para o
cargo de Luiz Paulo Barreto, então secretário executivo, pela falta de
força política do novo ministro, funcionário de carreira da pasta, em
que também angariou excelente reputação. “Isso (o cargo de ministro) é maior que o Luiz Paulo. (...) Agora eles vão pedir... para mim... pedir para a Polícia (Federal)”, desabafou.
Procurado por VEJA, Abramovay disse: “Nunca recebi pedido algum para
fazer dossiês, nunca participei de nenhum suposto grupo de inteligência
da campanha da candidata Dilma Rousseff e nunca tive de me esconder — ao
contrário, desde 2003 sempre exerci funções públicas”. Romeu Tuma
Júnior, seu interlocutor, porém, confirmou integralmente o teor das
conversas: “O Pedro reclamou várias vezes que estava preocupado com as
missões que recebia do Planalto. Ele me disse que recebia pedidos de
Dilma e do Gilberto para levantar coisas contra quem atravessava o
caminho do governo”. Acrescentou Tuma: “Há um jogo pesado de interesses
escusos. Para atingir determinados alvos, lança-se mão, inclusive, de
métodos ilegais de investigação. Ou você faz o que lhe é pedido sem
questionar, ou passa a ser perseguido. Foi o que aconteceu comigo”,
afirma o ex-secretário, que deixou a pasta em junho, depois que vieram a
público denúncias de que teria relacionamento com a máfia chinesa. Tuma
Júnior atribui a investigação contra si — formalmente arquivada por
falta de provas — a uma tentativa de intimidação por parte de pessoas
que tiveram seus interesses contrariados. Ele não quis revelar quais
seriam esses interesses: “Mas posso assegurar que está tudo devidamente
documentado”.
Para o ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, o diretor da PF, Luiz Fernando Corrêa (à dir.),
se valeu do aparato policial para monitorar autoridades. O ministro
suspeitou que ele próprio houvesse sido vítima de grampos ilegais e que
até o presidente Lula tivesse sido constrangido por Corrêa
O clima de desconfiança no Ministério da Justiça contaminou até o mais
alto escalão. A certa altura das conversas, o chefe da pasta, Luiz Paulo
Barreto, manifesta suspeita de que seu subordinado Luiz Fernando
Corrêa, diretor-geral da Polícia Federal, o espione. Em inúmeras
ocasiões, Barreto revelou a seus assessores não ter ascendência sobre
Corrêa. O ministro chega a expressar em voz alta sua desconfiança de que
o diretor da PF tem tanto poder que se dá ao luxo de decidir sobre
inquéritos envolvendo pessoas da antessala do presidente da República.
Um desses casos é relatado por Barreto em conversa no seu próprio
gabinete, ocorrida em meados de maio. À sua chefe de gabinete, Gláucia
de Paula, Barreto fala sobre o possível indiciamento de Gilberto
Carvalho, braço direito do presidente Lula. Em 2008, a PF interceptou
telefonemas em que o chefe de gabinete da Presidência conversava com o
advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, um dos investigados na Operação
Satiagraha, que prendeu o banqueiro Daniel Dantas.
Em um dos diálogos, o ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto (à esq.),
sua chefe de gabinete, Gláucia de Paula, e o então secretário nacional
de Justiça Romeu Tuma Júnior conversam sobre a origem do poder do
diretor da Polícia Federal, Luiz Fernando Corrêa — que teria conseguido,
entre outras coisas, evitar o indiciamento de Gilberto Carvalho, chefe
de gabinete do presidente Lula.
Gláucia de Paula
O Gilberto (Carvalho, chefe de gabinete da Presidência) foi indiciado?
Ministro Luiz Paulo Barreto
O processo foi travado. Deu m... (...) O negócio do grampo. O Luiz Fernando falou pra não se preocupar.
Gláucia de Paula
Tem certeza disso?
Ministro Luiz Paulo Barreto
O ministro Márcio (Thomaz Bastos) que me contou isso. O Gilberto (Carvalho) me contou isso.
Tuma
O Gilberto (Carvalho, chefe de gabinete da Presidência) foi indiciado?
Ministro Luiz Paulo Barreto
O processo foi travado. Deu m... (...) O negócio do grampo. O Luiz Fernando falou pra não se preocupar.
Gláucia de Paula
Tem certeza disso?
Ministro Luiz Paulo Barreto
O ministro Márcio (Thomaz Bastos) que me contou isso. O Gilberto (Carvalho) me contou isso.
Tuma
Esse cara tem alguma coisa, não é possível (...).
O ministro, que diz ter tido conhecimento do indiciamento pelo próprio
Gilberto Carvalho, revela que o diretor da PF promoveu uma encenação
para iludi-lo, numa manobra para mostrar que seu poder emanava de fora
da hierarquia do Ministério da Justiça. A conversa toma um rumo
inesperado. Um dos interlocutores fica curioso para saber a fonte real
de poder de Luiz Fernando, que lhe dá cobertura até para desafiar seu
próprio chefe sem temor de represálias. “Ele deve ter alguma coisa...”,
afirma. Procurado, Luiz Paulo Barreto informou que não comentaria nada
antes de ter acesso ao áudio da conversa. Gilberto Carvalho negou que já
tenha feito algum pedido a Pedro Abramovay, a mesma resposta de Dilma
Rousseff. As conversas e sua vinda a público funcionam como o poder de
limpeza da luz do sol sobre os porões. Elas são reveladoras da triste
realidade vivida por instituições respeitadas quando passam a ser
aparelhadas por integrantes de um projeto de poder.
O quartel-general da pré-campanha de Dilma Rousseff foi usado para espionar adversários. A mando de Luiz Lanzetta (à esq.), o ex-jornalista Amaury Ribeiro Jr. (abaixo) comprou a quebra do sigilo fiscal do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge (à dir.), e de aliados de José Serra
Outra demonstração disso surgiu na semana passada, quando a Polícia Federal forneceu a mais recente prova de quanto pode ser perniciosa a simbiose entre partido e governo. Na quarta-feira, depois de revelado que o ex-jornalista Amaury Ribeiro Jr., integrante do “grupo de inteligência” da campanha de Dilma, foi o responsável pela violação do sigilo fiscal de Eduardo Jorge e de outros integrantes do PSDB, o militante petista Lula, atualmente ocupando a Presidência da República, anunciou ao país que a PF faria revelações sobre o caso — antegozando o fato de que um delegado, devidamente brifado sobre o que deveria dizer, jogaria suspeitas das patifarias de Amaury Ribeiro sobre os ombros do PSDB. Mais uma vez, a feitiçaria dos petistas resultou em um tiro no próprio pé. Nunca aprendem que, uma vez aberta a caixa de Pandora, os fantasmas escapam e voam sem controle.
Em junho passado, VEJA revelou que o comitê de campanha de Dilma
Rousseff arregimentou um grupo de arapongas para espionar o candidato
José Serra, seus familiares e amigos. A tropa começou os trabalhos com o
que considerava um grande trunfo, um dossiê intitulado “Operação
Caribe”, produzido por Amaury e que narrava supostas transações
financeiras de pessoas ligadas ao PSDB. As únicas peças do dossiê fajuto
que não podiam ser lidas no Google haviam sido obtidas de forma
preguiçosa e venal, compradas de bandidos com acesso a funcionários da
Receita Federal — e pagas com dinheiro vivo. Os dados fiscais violados
serviram de subsídio para o tal relatório que circulou no comitê de
campanha. Como “previu” o militante petista que ora ocupa a Presidência
da República, horas depois de sua entrevista apareceram as tais
“novidades”. Um delegado anunciou que, com a identificação de Amaury, o
caso estava encerrado, já que o ex-jornalista, ao violar o sigilo, ainda
era funcionário do jornal O Estado de Minas, portanto não
haveria nenhuma ligação com a campanha do PT. O delegado Alessandro
Moretti foi o escolhido apenas para comunicar à nação as graves
revelações obtidas pelo trabalho policial — formalmente ele não
participou do inquérito. A lealdade no caso era mais vital do que o
profissionalismo policial. Número dois na diretoria de Inteligência da
PF, Moretti é produto direto do aparelhamento na Polícia Federal.
Fonte: Gustavo Ribeiro - Veja.com
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