O Estado de S.Paulo
Nesta manhã, ao se abrirem as seções eleitorais para
mais uma festa da democracia, estará se encerrando mais um episódio
memorável da série do "nunca antes na história deste país": dois
mandatos presidenciais sucessivos obstinada e precipuamente focados no
projeto político de manter no poder Lula e associados. Com grande
habilidade e total desembaraço na manipulação do varejo político, com um
carisma capaz de seduzir até os que se julgam mais esclarecidos e ainda
com o respaldo de um trabalho bem-feito na aceleração do
desenvolvimento econômico e na incorporação de milhões de brasileiros ao
mercado de consumo, Lula jamais perdeu de vista o projeto de poder a
serviço do qual colocou tudo e todos, inclusive e principalmente as
ações de governo. Menos mal que a perseguição desse objetivo transite,
pelo menos por enquanto, pela via eleitoral, embora não necessariamente
por convicção democrática, mas pela verificação de que, até onde a vista
alcança, não existem condições objetivas mínimas para nova aventura
escancaradamente autocrática no Brasil.
Quando se têm olhos para enxergar, os fatos demonstram claramente que
Lula e o PT não têm projeto de governo, apenas de poder. Foi a opção
que assumiram quando se cansaram de ser derrotados nas urnas. Passaram
então a fazer tudo, o que quer que seja, passando por cima, se
necessário, dos valores éticos que até então defendiam, e até mesmo
sobre as instituições da República, para garantir vitórias nas urnas.
Primeiro, houve a guinada radical nas principais proposições
programáticas do PT com a Carta aos brasileiros, em 2002. Depois, a
manipulação da opinião pública, especialmente dos segmentos menos
instruídos e por essa razão mais vulneráveis à demagogia, com a
massificação de inverdades como a de que o governo Fernando Henrique
legou ao País uma "herança maldita". A partir daí, aprendida a lição,
Lula e seu partido passaram a defender e praticar, sem constrangimentos,
exatamente o contrário do que originalmente pregavam. Se antes, na
oposição, o Plano Real tinha que ser combatido, agora, para manter o
poder, é bom continuar aplicando seus princípios (sem admitir isso
publicamente, é claro); se antes, na oposição, as oligarquias políticas
do Norte e Nordeste eram duramente condenadas, agora, para manter o
poder, é melhor a elas se associar; se antes, na oposição, qualquer
deslize dos administradores públicos era implacavelmente denunciado,
agora, para manter o poder, melhor fingir que isso não é nada, coisa
pouca, meros desvios.
É impressionante, aliás, a mudança de atitude do inspirador e
principal operador desse projeto de poder. Lula, que antes de chegar ao
Palácio do Planalto tinha ataques de virtuosa indignação diante de atos
de corrupção no governo, uma vez no poder varreu para debaixo do tapete
os "erros" cometidos por seus aliados e colaboradores, frequentemente
sob suas barbas, quando não lhes passou a mão na cabeça. Não há registro
no noticiário, durante toda a era Lula, de uma vez sequer que o
presidente tenha vindo a público para condenar explicitamente a
corrupção no seu governo ou em sua base partidária - e não foi por falta
de escândalos. O máximo a que se permitiu foi a tentativa de
desqualificar acusados com o debochado apodo de "aloprados". Toda sua
teatral indignação, todo o ímpeto de sua revolta, Lula reservou para
atacar quem, por dever de ofício, tem denunciado a falência ética de seu
governo: a imprensa.
De qualquer modo, o projeto de poder de Lula chega hoje a um ponto
decisivo. O chefe do PT colherá os frutos do que plantou, por um lado,
com seus acertos e, por outro, com a extraordinária esperteza que
revelou para se manter imune aos efeitos negativos de qualquer tipo de
desacerto, especialmente aqueles provocados pela concupiscência da
companheirada. Blindado pela imagem do trabalhador de origem humilde que
não se intimidou diante da perfídia das elites e logrou o feito
histórico de "colocar o povo no poder", descansa agora o presidente na
expectativa de sua maior recompensa. O que virá as urnas o dirão. Há que
respeitá-las. Mesmo que o maior efeito dessa festa democrática venha a
ser uma enorme ressaca para a consciência cívica do Brasil.
Comentários
Postar um comentário