Entrevista de FHC ao Correio Brasiliense


FHC acha que foi citado na campanha do PT por ser autor de mudanças no país

Uma cambalhota rumo ao pior da tradição política brasileira é como o sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso enxerga os oito anos de governo do atual ocupante do Planalto. Lula, para FHC, “esterilizou” o Partido dos Trabalhadores e obteve avanços econômicos menores do que era possível. Fernando Henrique considera a menção ao seu governo na propaganda eleitoral petista uma prova de que permanece como uma “pedra no caminho” dos adversários. “É um problema dentro da alma deles”, desdenha o ex-presidente, em entrevista exclusiva ao Correio. Durante a conversa na ampla sala que ocupa dentro do Instituto Fernando Henrique Cardoso, no centro de São Paulo, ele mostrou otimismo com os rumos do país, explicou por quais motivos considera o correligionário José Serra mais preparado para ser presidente, analisou os rumos que a disputa eleitoral tomou na reta final e criticou a postura de Lula na campanha, a quem chama de “líder de facção”. De Brasília, sente falta de sobrinhos e netos que moram na cidade e do “horizonte”, mas não da política. FHC também falou de suas atividades atuais, que incluem a participação em um filme a respeito do combate às drogas.

FHC “dentro da alma deles”
Que balanço o senhor faz dos oito anos de governo Lula?
Para minha surpresa, o Lula reforçou o que havia de pior na tradição política brasileira, que é o clientelismo, a fisiologia. Nunca imaginei que o Lula fosse dar uma cambalhota tão grande nesse sentido. Dentro do aspecto de cultura política, portanto, foi um retrocesso. O Estado brasileiro vem melhorando e continuará melhorando. Não podemos confundir o Estado com o governo. Você tem uma burocracia no Brasil cada vez mais competente. As empresas estatais são cada vez melhores. O que eu acho que o governo Lula fez de errado nesse aspecto é que voltou a ter uma coloração de ingerência política muito grande nas empresas estatais, que tinham que ser públicas e são cada vez menos públicas, no sentido de servir cada vez menos ao Estado e mais aos interesses de partidos e sindicatos.

As alianças feitas pelo PT ao longo do governo agravam esse quadro?
Você não governa um país tão diversificado como o Brasil, onde o partido do presidente não tem mais de 20% do Congresso, sem alianças. A questão da aliança é outra. Aliança para quê? Tem uma frase de um sociólogo, o Werneck Viana, que eu gosto muito, que diz o seguinte: “O PT e o PSDB disputam quem comanda o atraso. O problema grave é quando o atraso comanda”. Por exemplo, o mensalão foi um momento em que o atraso comandou o PT. As alianças têm que ser feitas com um propósito. Quando o objetivo é só se manter no poder, aí realmente você vê o atraso comandando o Brasil.

E quanto às realizações práticas, o senhor observa avanços?
O Fundo Monetário Internacional deu uma relação do que ocorreu do ano 2000 a 2010 nas economias mundiais. O Brasil passou de 9ª para 8ª. Porém, o crescimento da economia brasileira foi menor que a da argentina, da peruana, da colombiana. O PIB cresceu só 42,79% na década em média. Ou seja, 4,2%. Em renda per capita, passamos de 68º para 71º, sendo que o aumento de renda na década foi de 57%. O que isso quer dizer? Que estamos melhorando numa velocidade muito menor do que a maioria dos países.

Uma marca forte do governo Lula é a área social, tendo como vitrine o programa Bolsa Família. O que o senhor pensa a respeito disso?
Existem 15 países na América Latina com esse mesmo programa. Isso começou na década de 1990, em Honduras. O Brasil começou em 1997, com o Bolsa Escola e outras bolsas mais, e foi melhorando. O melhor país que fez foi o Chile. Tudo bem que lá são só 250 mil famílias. Mas eles conseguiram fazer um programa de tal maneira que eles acompanham as bolsas até que a família consiga dispensar o benefício, quando tem emprego e está ligada ao sistema geral de educação e saúde. O nosso ainda está longe disso. Até porque é muita gente. Não estou cobrando isso. Mas o fato é que estamos longe de ser um programa que tenha acabado com a pobreza. Está, na verdade, subsidiando a pobreza. É claro que é melhor subsidiar do que não subsidiar. Quem começou o subsídio fui eu. Mas você não pode cantar vitória alardeando redução de pobreza.

De onde vem esse otimismo?
Acho que aprendemos a lidar com economia internacional, com câmbios e com programas sociais. O problema nosso agora é racionalidade e velocidade de gestão.

Se o PT ganhar, como apontam os institutos de pesquisa, isso será possível?

Não quero prejulgar o que vai acontecer. Se for no mesmo caminho do que está ocorrendo, vamos continuar deixando muito clientelismo pelo caminho. A continuidade desse estilo de fazer política me parece muito ruim. Não falo das políticas de Estado. O Estado brasileiro como um todo aprendeu muito e faz, o governo menos do que Estado.

E o Serra no poder, como será?
Serra define objetivos e vai buscá-los. O Serra não é um político no sentido tradicional, de ceder aqui, ceder acolá. E o Brasil, neste momento, precisa de gente que não tenha esse estilo tradicional para poder colocar as coisas no trilho.

Como o senhor analisa a comparação exaustivamente apresentada na propaganda petista entre Lula e FHC?
A comparação é equivocada. Eu acho até fantástico que oito anos depois eles só falem de FHC. Não se livram dessa pedra no caminho, porque é uma pedra no caminho, não é? Não tem outro jeito porque as mudanças foram feitas por mim. Isso é um problema lá dentro da alma deles, que precisam se apropriar de tudo. E não conseguem, porque não tem jeito, não dá para mentir o tempo todo.

Lula saiu em defesa de sua candidata, enquanto a ausência do senhor no programa tucano foi percebida. O que ocorreu?Pergunte ao Serra e à campanha do Serra.

Mas não foi criado, em julho passado, um núcleo político para a campanha, tendo o senhor como membro?

Esse núcleo nunca existiu. Eu só vi no jornal. Nunca houve reunião desse grupo. A campanha é orientada pelo Serra e pelo pessoal do Serra.

Na campanha para prefeito de São Paulo, em 1985, o senhor foi interpelado pelo apresentador Boris Casoy, durante um debate, sobre crer ou não em Deus. E acabou perdendo para Jânio...
Exato. E eu disse a ele que ele não deveria fazer essa pergunta. Falei que a pergunta deveria ser se eu respeitava as religiões, se, como prefeito, respeitaria a liberdade religiosa. A crença é uma questão pessoal que deve ser preservada numa democracia.

Já reviu a decisão de não cumprir mais mandatos políticos?
Não, continuo firme em não querer mais me envolver em política eleitoral. A vida intelectual para mim sempre foi muito forte.

É verdade que o senhor está fazendo um filme sobre a descriminalização da maconha?
Não sobre a descriminalização, mas sobre o problema das drogas em si. O tema do vídeo, do qual sou um dos participantes, é a chamada guerra contra as drogas, que está fracassando no mundo inteiro. Então, a ideia do filme não é apontar uma proposta, mas mostrar diferentes pontos de vista, diferentes experiências no mundo. Uma das mais importantes, sem dúvida, é a de Portugal, onde descriminalizaram todas as drogas. Ou seja, não é legalizar, e sim não mandar para a cadeia. Além disso, lá eles montaram uma rede de assistência aos dependentes. Creio que o caminho seja por aí, não pela repressão.

O senhor já tinha essa opinião quando presidente, mas não podia expressá-la?
Não, eu acreditava, quando estava no governo, que o caminho era erradicar. Fizemos, inclusive, erradicação de plantação de maconha em Pernambuco. O que não adiantou nada. Porque plantavam de novo em outro lugar. 

Fonte: Renata Mariz - Correio Brasiliense

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