Celso Lafer
"Nunca, jamais, na História deste país" - para evocar o
bordão preferido do presidente Lula - um chefe de Estado se dedicou a
mobilizar tantos recursos para favorecer a sua candidata numa eleição
presidencial. Na campanha, o tema recorrente do presidente tem sido a
importância da continuidade do que entende ser a inédita qualidade do
seu governo. Essa continuidade a candidata Dilma Rousseff, por ele
ungida como um seu Outro Eu, teria o dom de levar adiante, até mesmo em
matéria de política externa. Assim, no debate democrático sobre as
opções que o País tem pela frente, cabe uma discussão sobre a qualidade
da diplomacia lulista.
A política externa é uma política pública, como o são a da saúde e a
da educação. Como política pública, a política externa tem como objeto
traduzir necessidades internas em possibilidades externas. Por essa
razão, na sua formulação e execução, precisa lidar com dois grandes
desafios: o de definir adequadamente necessidades internas e o de
avaliar, com discernimento, as possibilidades externas. A análise da
política externa do governo do PT passa, assim, por um exame de como
foram tratados esses dois desafios.
O Brasil não enfrenta problemas de segurança de envergadura, como
países do Oriente Médio ou da Ásia, que estão mais próximos dos riscos
da situação-limite paz/guerra. Por isso, pode considerar o desafio do
desenvolvimento nacional, na sua abrangente sustentabilidade -
econômica, social, política, ambiental, de inovação e conhecimento -,
como sua grande necessidade interna. Cabe lidar bem com esse desafio,
que significa ampliar o poder de controle da sociedade brasileira sobre o
seu próprio destino, numa era de globalização, na qual o mundo se
internaliza na vida dos países, inclusive no capítulo dos riscos (por
exemplo, tráfico de drogas, crises econômicas, mudanças climáticas).
Para discernir o que o mundo pode contribuir para o desenvolvimento
do País é preciso bem entender o cenário internacional e a sua complexa
agenda. Esta contempla os temas da guerra, da violência, da segurança
coletiva, da economia, do comércio, das finanças, do meio ambiente, dos
direitos humanos e da democracia, das forças centrífugas das identidades
e dos particularismos. Do bom entendimento da "máquina do mundo" provém
a boa avaliação das possibilidades externas da ação diplomática de um
país, na especificidade de suas circunstâncias. Nessa avaliação é
preciso evitar dois riscos opostos: o da inércia omissiva do
subestimar-se e o da inconsequência do superestimar-se. Isso exige levar
em conta que são tarefas da política externa identificar interesses
comuns e compartilháveis, lidar com as desigualdades do poder e ter
condições de mediar a diversidade cultural e o conflito de valores.
A minha crítica à diplomacia lulista é dupla. Entendo que, com
consequências negativas para o País, não definiu apropriadamente as
necessidades internas e não avaliou corretamente as possibilidades
externas.
Quanto ao primeiro item, aponto que a política externa do governo do
PT se voltou para a busca do prestígio, com foco no prestígio do
presidente. Uma diplomacia de prestígio e de gestos é menos atenta à
falta de resultados. Não atende ao princípio constitucional da
impessoalidade da administração pública, pois converte a política
externa numa política de governo voltada para, partidarizando,
capitalizar no Brasil e no mundo os personalíssimos méritos do
presidente. Desconsidera, igualmente, o princípio constitucional da
eficiência da administração pública, pois a indiscriminada abertura de
novas embaixadas e de consulados-gerais, assim como a exagerada
ampliação das vagas de ingresso na carreira, obedece ao afã da
acumulação do prestígio, e não a critérios de necessidade objetiva.
Quanto ao segundo item, registro que toda política pública requer uma
clara definição de prioridades - governar é escolher, como dizia
Mendès-France. Pressupõe uma gestão de riscos inerente ao campo
específico de sua atuação. A diplomacia de prestígio e o voluntarismo da
política externa lulista não fizeram nem uma coisa nem outra, em função
de uma dupla falta da medida na avaliação das possibilidades externas
do País. Na busca do inefável prestígio, ora superestima, ora subestima o
que o País pode fazer. São exemplos da inconsequência do
superestimar-se a ação brasileira no caso do Irã e no de Honduras e os
reiterados insucessos das candidaturas a posições internacionais. São
exemplos do subestimar-se omissivo, que também se traduz em não escolher
os campos de atuação em que o nosso país pode encontrar melhores
oportunidades para se afirmar no plano internacional, a resistência a
desempenhar um papel mais relevante na área ambiental (na qual o Brasil é
uma grande potência), a insensível negligência em matéria de direitos
humanos, o descuido na negociação de acordos comerciais regionais, a
complacência política no trato dos desvios de rota do Mercosul como
processo de integração.
A diplomacia lulista, em razão dos equívocos acima apontados, vem
descapitalizando de maneira crescente o soft power da credibilidade
internacional do Brasil, comprometendo, desse modo, o próprio prestígio
do País. Esta situação vem sendo agravada pelo empenho do presidente em
construir amigas parcerias com regimes permeados pela iniquidade do
arbítrio (por exemplo, o Irã de Ahmadinejad). A continuidade desta
diplomacia é indesejável. Não contribuirá para a sustentabilidade da
ação externa brasileira num cenário que se avizinha como mais complexo,
seja no contexto das tensões da nossa vizinhança, seja no campo
multilateral, seja no jogo das grandes potências, no qual despontam as
novas parcerias da China e da Índia com os EUA.
PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA
BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, FOI MINISTRO
DAS RELAÇÕES EXTERIORES NO GOVERNO FHC
Fonte: O Estado de S.Paulo
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