As doutrinas murcham, as utopias desaparecem, a
alienação se expande e a política se escancara para abrigar quem dela
quer fazer uma profissão e até figuras que a usam como mote para fazer
piada. O conceito que a política alcançou entre nós chega ao fundo do
poço com esta pergunta ao eleitor feita pelo palhaço Tiririca, candidato
nesta eleição: "O que é que faz um deputado federal?" E ele mesmo
responde: "Na realidade, não sei. Mas vote em mim que eu te conto."
Ninguém se deve surpreender se este candidato conseguir os votos
necessários para fazer chiste no palco do Congresso Nacional, onde se
poderá juntar a outros representantes que fizeram ou ainda fazem sucesso
com suas habilidades na esfera dos esportes, das artes e dos
divertimentos.
Afinal, por que o pleito deste ano, mais do que outros, coopta
figuras não tão integradas ao mundo da política, como Maguila, Moacir
Franco (que já frequentou a arena parlamentar), Ronaldo Esper, Netinho
de Paula, Marcelinho Carioca, Romário ou a pleiteante conhecida como
Mulher Pera?
De duas, uma: ou os novos atores políticos foram compelidos a
ingressar no espaço público para cumprir relevante missão a serviço de
coletividades que representam - e, se for esse o motivo, devem ser
aplaudidos - ou a opção se deve ao esgotamento do ciclo profissional e
ao vislumbre de uma carreira sob as luzes da democracia representativa.
Seja qual for o motivo, o ingresso de celebridades no universo político
merece reflexão, por assinalar, de certa forma, o estágio de
desenvolvimento social, cultural e político de um povo. A razão para
profissionais de outros nichos ingressarem no mundo da política tem que
ver com a eleição de uma figura de origem humilde para o cargo mais
importante da Nação? Será que, com sua ascensão, Lula teria aberto o
caminho para qualquer pessoa, da mais simples à mais elevada, sentir-se
motivada a pleitear os postos eletivos da República?
É razoável inferir que a escolha de um ex-metalúrgico para presidir a
Nação pode ter contribuído para promover a autoestima de milhões de
cidadãos, mas, sob o prisma da relação entre celebridade e política, há
componentes quiçá mais apropriados para explicar o fenômeno. O sociólogo
francês Edgar Morin, em clássico estudo sobre o comportamento da
sociedade contemporânea, descreve o Olimpo da cultura de massas, onde
sobressaem artistas, reis, rainhas, princesas, esportistas, mandatários,
enfim, uma constelação de astros de todos os espectros que, por seu
desempenho nos ambientes social, cultural, artístico e político, ganham
ampla visibilidade. E por pertencerem a um seleto mundo, expostas à
fosforescência das mídias, tais celebridades compõem uma identidade
dual, humano/divina, tornando-se figuras modelares em que se espelham as
massas. Assim, o anônimo nas multidões distingue o olimpiano como um
ícone no altar da admiração. Em seu cotidiano, procura exercitar a
imaginação, identificando-se com atitudes, gestos e gostos dos ídolos
admirados, neles projetando valores e princípios de conduta. Portanto,
os mecanismos psicológicos da identificação e projeção são acionados
para gerar impulso, motivando as massas a correr na direção dos seus
"deuses".
Enxertemos, agora, a "galeria idolatrada" no universo da política.
Que tipo de reação se pode esperar da massa senão a busca do autógrafo, a
liturgia dos apertos de mão, abraços e beijos, a necessidade
psicológica de interação espiritual entre "adoradores e adorados"?
Abraçar o artista no auge de sua fama significa, para um "pobre mortal",
partilhar, mesmo que por segundos, de um cantinho no Olimpo. Donde se
chega à ilação: sem demérito para partido e figurantes, celebridade que
se candidata a cargo eletivo funciona como anzol de pesca do eleitorado.
Quanto mais famosa, mais eleitores arrebanhará, adensando siglas.
Votações maiores puxam e elegem candidatos de diminuta expressão. Ao
lado desse aspecto, que desvenda estratégia de esperteza e oportunismo, a
expansão da participação de artistas e esportistas em campanhas
eleitorais aponta, igualmente, para a deterioração dos padrões
políticos. Portassem bandeiras em defesa de legítimos interesses de
categorias e grupos, os candidatos famosos poderiam desempenhar a função
representativa sem críticas a suas atitudes. Não é o caso, porém, de
postulantes que debocham da missão para a qual tentam habilitar-se.
Infelizmente, a firula, o drible, as manobras espertas e os recursos
extravagantes têm sido adotados sem escrúpulos no processo eleitoral.
Plagiam-se propostas, troca-se a ética pela estética e até a imitação da
voz de artistas é usada para capturar a atenção de eleitores e
conquistar seu voto. Essa é uma faceta rasteira que denota a banalização
da política e da despolitização da sociedade. Se o País conseguiu
alterar a fisionomia da pirâmide social, com a inserção de cerca de 25
milhões de brasileiros no mercado de consumo, exibe hoje performance
desastrosa na frente política, caracterizada, sobretudo, pela
privatização da esfera pública. "O poder é meu e eu faço com ele o que
quiser." Eis a síntese do ideário que prevalece nestes tempos que
exaltam a continuidade. Vale lembrar que o presidente Luiz Inácio,
eleito em 2002, começou assim seu discurso: "Mudança, esta é a
palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas
eleições de outubro. A esperança finalmente venceu o medo e a sociedade
brasileira decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos."
Quase oito anos depois, o Brasil patina na pista da política. A
economia estabilizou-se, a inflação foi domada, os movimentos sociais se
organizaram, a renda passou a ser distribuída aos mais carentes e a
vida até ficou mais cômoda para os bolsos. A política, porém, continua
velha. E a abrigar, de modo passivo, o canhestro desfile nos programas
eleitorais de cacarecos, quadros debochados, estroinas e oportunistas. O
slogan do palhaço Tiririca soa como profecia: "Pior do que tá não
fica."
Gaudêncio Torquato - O Estado de S.Paulo
JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO
Isso nos deixa triste demais Welbi... Faz com que o brasileiro acredite cada vez menos nos seus políticos... Infelizmente se acaba generalizando e os bons sofrem com isso!
ResponderExcluirAbraço e Sucesso!