Demétrio Magnoli - O Estado
de S.Paulo
Marqueteiros leem pesquisas como seminaristas leem a Bíblia. Do alto
de seu literalismo fetichista, disseram a Serra que confrontar Lula
equivale a derrota certa. Então, o governador resolveu comparar sua
biografia à da candidata palaciana. Mas Dilma não existe, exceto como
metáfora, o que anula a estratégia serrista. "Vai ficar um vazio nessa
cédula e, para que esse vazio seja preenchido, eu mudei de nome e vou
colocar Dilma lá na cédula", explicou Lula, cuja estratégia não é
definida por marqueteiros. O pseudônimo circunstancial de Lula
representa uma política, que é o lulismo. A candidatura de Serra só tem
sentido se ele diverge dessa política.
O lulismo não é a política macroeconômica do governo, tomada de
empréstimo de FHC, mas uma concepção sobre o Estado. A sua vinheta de
propaganda, divulgada com dinheiro público pelo marketing oficial, diz
que o Brasil é "um país de todos". Eis a mentira a ser exposta. O Estado
lulista é um conglomerado de interesses privados. Nele se acomodam a
elite patrimonialista tradicional, a nova elite política petista,
grandes empresas associadas aos fundos de pensão, centrais sindicais
chapa-branca e movimentos sociais financiados pelo governo.
O Brasil não é "de todos", mas de alguns: as máfias que colonizam o
aparelho de Estado por meio de indicações políticas para mais de 600 mil
cargos de confiança em todos os níveis de governo. Num "país de todos",
a administração pública é conduzida por uma burocracia profissional. O
Brasil do lulismo, no qual José Sarney adquiriu o estatuto de "homem
incomum", não fará uma reforma do Estado. Estaria Serra disposto a
erguer essa bandeira, afrontando o patrimonialismo entranhado em sua
própria base política?
O Brasil não é "de todos", mas de alguns: Eike Batista, o sócio do
BNDES, "o melhor banco de fomento do mundo", nas suas palavras, do qual
recebeu um presente de R$ 70 milhões numa operação escabrosa no mercado
acionário. Também é o país dos controladores da Oi, que erguem um
semimonopólio a partir de privilégios concedidos pelo governo, inclusive
uma providencial alteração anticompetitiva na Lei Geral de
Telecomunicações, e se preparam para formar uma parceria com a Telebrás
no sistema de banda larga. O lulismo orienta-se na direção de um
capitalismo de Estado no qual o BNDES, as estatais e os fundos de pensão
transferem recursos públicos para empresários que orbitam ao redor do
poder. Teria Serra a coragem de criticar o modelo em gestação,
inscrevendo na sua plataforma a separação entre o interesse público e os
interesses privados?
O Brasil não é "de todos", mas de alguns: a nova burocracia sindical,
cuja influência não depende do apoio dos trabalhadores, mas do imposto
compulsório de origem varguista, repaginado pelo lulismo. Ousaria Serra
defender a adoção da Convenção 87 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), declarando guerra ao neopeleguismo e retomando a palavra
de ordem da liberdade sindical que um dia pertenceu ao PT e à CUT?
Num "país de todos", o sigilo bancário e o fiscal só podem ser
quebrados por decisão judicial. No Brasil do lulismo, como atestam os
casos de Francenildo Costa e Eduardo Jorge Caldas, eles valem menos que
as conveniências de um poder inclinado a operar pela chantagem. Num
"país de todos", a cidadania é um contrato apoiado no princípio da
igualdade perante a lei. No Brasil do lulismo, os indivíduos ganham
rótulos raciais oficiais, que regulam o exercício de direitos e traçam
fronteiras sociais intransponíveis. Num "país de todos", a política
externa subordina-se a valores consagrados na Constituição, como a
promoção dos direitos humanos. No Brasil do lulismo, a palavra
constitucional verga-se diante de ideologias propensas à celebração de
ditaduras enroladas nos trapos de um visceral antiamericanismo. Estaria
Serra disposto a falar de democracia, liberdade e igualdade,
distinguindo-se do lulismo no campo estratégico dos valores
fundamentais?
O lulismo é uma doutrina conservadora que veste uma fantasia de
esquerda. Sob Lula, expandiram-se como nunca os programas de
transferência direta de renda, que produzem evidentes dividendos
eleitorais, mas pouco se fez nas esferas da educação, da saúde e da
segurança pública. No país de alguns, os pobres não têm direito a
escolas públicas e hospitais de qualidade ou à proteção do Estado diante
do crime organizado. Teria Serra o desassombro de deixar ao relento os
Eikes Batistas do mundo, comprometendo-se com um ambicioso plano de
metas destinado a universalizar os direitos sociais?
Há um subtexto na decisão de Serra de comparar biografias. Ele está
dizendo que existe um consenso político básico, cabendo aos eleitores a
tarefa de definir o nome do gerente desse consenso nacional. É uma falsa
mensagem, que Lula se encarrega de desmascarar todos os dias. Os
brasileiros votarão num plebiscito sobre o lulismo. Se Serra não
entender isso, perderá as eleições e deixará a cena como um político
comum, impróprio para circunstâncias excepcionais. Mas ele ainda tem a
oportunidade de escolher o caminho do estadista e perder as eleições
falando de política. Nesse caso ? e só nesse! ? pode até mesmo triunfar
nas urnas.
SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL:
DEMETRIO.MAGNOLI@TERRA.COM.BR
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