Fernando Henrique Cardoso -
O Estado de S.Paulo
O mundo continua se contorcendo sem encontrar caminhos
seguros para superar as consequências da crise desencadeada no sistema
financeiro. Até a ideia (que eu defendi nos anos 1990 e parecia uma
heresia) de impor taxas à movimentação financeira reapareceu na voz dos
mais ortodoxos defensores do rigor dos bancos centrais e da
intocabilidade das leis de mercado. No afã de estancar a sangria
produzida pelas exacerbações irracionais dos mercados, outros tantos
ortodoxos passaram a usar e até a abusar de incentivos fiscais e
benesses de todo tipo para salvar os bancos e o consumo.
Paul Krugman, mais recentemente, lamentou a resistência europeia à
frouxidão fiscal. Ele pensa que o corte aos estímulos pode levar a
economia mundial a algo semelhante ao que ocorreu em 1929. Quando a
crise parecia acalmada, em 1933, suspenderam-se estímulos e medidas
facilitadoras do crédito, devolvendo a recessão ao mundo. Será isso
mesmo? É cedo para saber. Mas, barbas de molho, as notícias que vêm do
exterior, e não só da Europa, mas também da zigue-zagueante economia
americana e da letárgica economia japonesa, afora as dúvidas sobre a
economia chinesa, não são sinais de uma retomada alentadora.
Enquanto isso, vive-se no Brasil oficial como se nos tivéssemos
transformado numa Noruega tropical, na feliz ironia deste jornal em
editorial recente. E em tão curto intervalo que estamos todos atônitos
com tanto dinheiro e tantas realizações. Basta ler o último artigo
presidencial no Financial Times. A pobreza existia na época da
"estagnação". Agora assistimos ao espetáculo do crescimento, sem travas,
dispensando reformas e desautorizando preocupações. Se no governo
Geisel se dizia que éramos uma ilha de prosperidade num mundo em crise,
hoje a retórica oficial nos dá a impressão de que somos um mundo de
prosperidade e o mundo, uma distante ilha em crise. Baixo investimento
em infraestrutura? Ora, o PAC resolve. Receio com o aumento do
endividamento público e o crescente déficit previdenciário? Ora,
preocupação com isso é lá na Europa. Aqui, não. Afinal, Deus é
brasileiro.
Só que a realidade existe. A prosperidade de uns depende da de outros
no mundo globalizado. Por mais que estejamos relativamente bem em
comparação com os países de economia mais madura, se estes estagnarem ou
crescerem a taxas baixas, haverá problemas. A queda nos preços das
matérias-primas prejudicará as nossas exportações, grande parte delas
composta de commodities. A ausência de crescimento complicará a solução
dos desequilíbrios monetários e fiscais dos países ricos e isso
significará menos recursos disponíveis para o Brasil no mercado
financeiro global. Não devemos ser pessimistas, mas não nos podemos
deixar embalar em devaneios quase infantis, que nos distraem de discutir
os verdadeiros desafios do País.
Infelizmente, estamos às voltas com distrações. Um cântico de louvor
às nossas grandezas, de uma falta de realismo assustador. Embarcamos na
antiga tese do Brasil potência e, sem olhar em volta, propomo-nos a dar
saltos sem saber com que recursos: trem-bala de custos desconhecidos,
pré-sal sem atenção ao impacto do desastre no Golfo do México sobre os
custos futuros da extração do petróleo, capitalização da Petrobrás de
proporções gigantescas, uma Petro-Sal de propósitos incertos e tamanho
imprevisível. Tudo grandioso. Fala-se mais do que se faz. E o que se faz
é graças a transferências maciças do bolso dos contribuintes para o
caixa das grandes empresas amigas do Estado, por meio de empréstimos
subsidiados do BNDES, que de quebra engordam a dívida bruta do Tesouro.
A encenação para a eleição de outubro já está pronta. Como numa
fábula, a candidata do governo, bem penteada e rosada, quase uma
princesinha nórdica, dirá tudo o que se espera que diga, especialmente o
que o "mercado" e os parceiros internacionais querem ouvir. Mas a
própria candidata já alertou: não é um poste. E não é mesmo, espero. Tem
uma história, que não bate com o que se quer que ela diga. Cumprirá o
que disse?
No México do PRI, cujo domínio durou décadas, o presidente apontava
sozinho o candidato a suceder-lhe, num processo vedado ao olhar e às
influências da opinião pública. No entanto, quando a escolha era
revelada ao público - "el destape del tapado" -, o escolhido via-se
obrigado a dizer o que pensava. Aqui, o "dedazo" de Lula apontou a
candidata. Só que ela não pode dizer o que pensa para não pôr em risco a
eleição. Estamos diante de uma personagem a ser moldada pelos
marqueteiros. Antigamente, no linguajar que já foi da candidata, se
chamava isso de "alienação".
Esconde-se, assim, o que realmente está em jogo. Queremos aperfeiçoar
nossa democracia ou aceitaremos como normais os grandes delitos de
aloprados e as pequenas infrações sistemáticas, como as de um presidente
que dá de ombros diante de seis multas a ele aplicadas por desrespeito à
legislação eleitoral? Queremos um Estado partidariamente neutro ou
capturado por interesses partidários? Que dialogue com a sociedade ou se
feche para tomar decisões baseadas em pretensa superioridade
estratégica para escolher o que é melhor para o País? Que confunda a
Nação com o Estado e o Estado com empresas e corporações estatais, em
aliança com poucos grandes grupos privados, ou saiba distinguir uma
coisa da outra em nome do interesse público? Que aposte no
desenvolvimento das capacidades de cada indivíduo, para a cidadania e
para o trabalho, ou veja o povo como massa e a si próprio como
benfeitor? Que enxergue no meio ambiente uma dimensão essencial ou um
obstáculo ao desenvolvimento?
Está na hora de cada candidato, com a alma aberta e a cara lavada,
dizer ao País o que pensa.
SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Grande, Presidente FHC, mais uma lúcida e valiosa colaboração, sempre de fundamentação política e econômica, de quem realmente se interessa pelo nosso desenvolvimento sustentado e seguro, e o bem estar do povo brasileiro.
ResponderExcluirMuito bem colocado. Responsável e ponderado, como era de se esperar de uma pessoa séria, culta e inteligente. Pensem "about"...
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