ROBERTO ROMANO - O Estado de S.Paulo
O
governo brasileiro assumiu uma prática antiga na ordem internacional.
Trata-se da razão de Estado. Na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos da
América é muito clara essa forma de pensar e agir. O Brasil, por sua
vez, viveu sob a razão de Estado como súdito de Portugal, depois num
Império conservador e duas ditaduras. Sem potência militar ou econômica
para atingir os seus interesses, o País seguiu regras alheias e alvos
idem. Agora o Itamaraty executa planos heterodoxos, sobretudo no campo
dos direitos humanos. Prisioneira de regimes como os de Cuba, Irã,
Zimbábue, Coreia do Norte e de outros países que violam estatutos
civis, a Realpolitik brasileira se justifica pela suposta eficácia
geopolítica ou econômica. Em Honduras, quando quebrou normas
diplomáticas, interferindo nos assuntos internos do país, e no episódio
iraniano, ao apoiar um dirigente antissemita, perdeu o Brasil. O recuo
no acordo com a ditadura do Irã mostra a imprudência de nossa
Chancelaria. Tais desastres mostram uma razão de Estado bisonha, mas,
como as suas primas sérias, afeita à dissimulação.
A razão de Estado surgiu no Renascimento e significa o recurso da
força e da astúcia a serviço do poder político. O seu ápice se encontra
no absolutismo. Neste último, o governante foi posto acima das
instituições. Contra tal arbítrio surge a democracia moderna na
Inglaterra (século 17), nos Estados Unidos e na França (século 18). Os
governos e os legisladores, mesmo os juízes, passam a integrar o corpo
cidadão e jamais devem colocar-se fora dele. Assim, é exigido de todos
os que operam no espaço público o compromisso com a verdade (daí o
livre exame e a imprensa sem peias), a dita "accountability".
Fé pública e verdade garantem, nas democracias, os deveres, as leis,
os contratos. As sociedades livres não podem existir sem a verdade.
Nelas o segredo e a dissimulação devem ser atenuados. A mentira e
similares ameaçam o coletivo, pois corrompem o juízo e as condutas.
Nada é garantido no campo democrático, que, segundo Norbert Lenoir, "é
menos um regime que duraria por suas próprias forças, em virtude de
seus princípios constitucionais, do que uma dinâmica: dinâmica de uma
extensão dos direitos e generalização dos direitos fundamentais,
resistência à concentração do poder que pode favorecer uma oligarquia
reinante em nome do povo" (Democracia e Espaço Público). Quando
partidos ou líderes são postos acima ou fora da ordem constitucional,
surge a tutela arbitrária exercida contra o povo, impera a razão de
Estado. Esta é sinônimo de segredo e de espionagem. O pensamento
democrático é oposto ao segredo. A publicidade é "a lei mais apropriada
para garantir a confiança pública, sendo a causa de seu avanço
constante rumo ao fim de sua instituição". Ademais, o segredo "é
instrumento de conspiração; ele não deve, portanto, ser o sistema de um
governo normal" (Bentham, Of Publicity). Segundo Georg Simmel, "toda
democracia considera a publicidade como intrinsecamente desejável,
seguindo a premissa fundamental de que todas as pessoas deveriam
conhecer os eventos e circunstâncias que lhes interessam, visto que
esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir nas decisões
sobre elas mesmas". Procedimentos secretos são corrigidos pela
publicidade, ou seja, pela imprensa.
O governo atual é inimigo da livre expressão do pensamento. Para
salvar as aparências na ordem externa, aumentando o número de votos em
plano interno, seus adjuntos e aliados pregam o "controle social da
imprensa". Tal prática, sob o disfarce da vontade coletiva, herda a
pior razão de Estado moderna, a fascista.
No tema, basta citar Carl Schmitt - acarinhado pela esquerda, depois
de ser oráculo da direita mundial - e seu pensamento sobre o controle
político. O jurista alemão afirma que, no mister de formar a opinião
pública, a imprensa estaria prestes a ser destronada pelo audiovisual.
A mídia ameaçaria o Estado na tarefa de moldar o pensamento coletivo.
Assim, pensa Schmitt, o Estado deve ter controle direto ou indireto
daquelas técnicas, usando-as para propaganda. "Não existe ainda",
acrescenta Schmitt, "um Estado tão liberal que não tenha reivindicado
em seu proveito pelo menos uma censura intensiva e um controle sobre
filmes e imagens, e sobre o rádio. Nenhum Estado pode permitir deixar a
um adversário os novos meios técnicos de dominação das massas, sugestão
das massas e formação da opinião pública." O Estado total, segundo
Schmitt, controla a comunicação. Assim, "os novos meios técnicos
pertencem exclusivamente ao Estado e servem para o aumento de sua
potência". O Estado novo "não deixa surgir em seu interior forças
inimigas que o obstruam ou desagreguem. Ele não deixa que seus inimigos
disponham de meios técnicos, sapando sua potência por um slogan
qualquer como Estado de Direito, liberalismo ou um nome outro. Ele sabe
distinguir entre amigo e inimigo. (...) Sempre foi assim e a novidade
reside apenas nos meios técnicos, cuja importância política deve ser
levada em conta" (citado por Olivier Beaud: Les derniers jours de
Weimar. Carl Schmitt face à l"avènement du nazisme).
A razão nanica de Estado espiona cidadãos e censura a imprensa. É o
"controle social"... Daí o costume de armar denúncias, os supostos
dossiês, a quebra ilegal dos sigilos bancários. Recordemos o ataque
covarde de agentes públicos a Francenildo Santos Costa, o dossiê dos
aloprados, o dossiê contra Ruth Cardoso e, agora, os papéis contra
Eduardo Jorge. Certa parcela da ordem política brasileira recorda a
bonequinha matrioshka: um crime dentro de um crime, dentro de um crime,
dentro de um crime... E todos os crimes são impunes porque praticados
em nome da razão nanica de Estado. Quem arma dossiês aproveita a
penumbra, o silêncio, o segredo que infecta as entranhas do poder
político. Saibamos reagir a tempo, porque depois, sob uma ditadura,
restam apenas as receitas de bolos, sob a censura e a espionagem.
PROFESSOR TITULAR DA UNICAMP
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