A
despeito das bazófias presidenciais, que, vez por outra, voltam ao
bordão de que "hoje não nos agachamos mais" perante o mundo, se há
setor no qual o Brasil ganhou credibilidade e, portanto, o respeito
internacional foi no das relações exteriores. Elas sempre foram
orientadas por valores e estiveram intransigentemente fincadas no
terreno do interesse nacional. A demagogia presidencial não passa de
surto de ego deslumbrado, que desrespeita os fatos e mesmo a dignidade
do País.
Com exceção dos flertes com o totalitarismo europeu durante o Estado
Novo, sempre nos orientamos pela defesa dos valores democráticos, pela
busca da paz entre as nações, por sua igualdade jurídica e pela defesa
de nossos interesses econômicos. Com toda a dificuldade do período da
guerra fria - quando os governos militares se opuseram ao mundo
soviético e a seus aliados -, não nos distanciamos do que então se
chamava de Terceiro Mundo. Se não nos juntamos propriamente ao grupo
dos "não-alinhados", dele sempre estivemos próximos. Terminada a guerra
fria, restabelecemos relações com os países do campo socialista, Cuba e
China à frente, voltamos a estar mais ativamente presentes na África,
apoiamos o Conselho de Segurança da ONU nos conflitos entre Israel e a
Palestina, sustentamos a posição favorável à criação de "dois Estados"
e o respeito às fronteiras de 1967 e nunca nos solidarizamos com o
grito de "delenda Israel" nem com as afrontas de negação do Holocausto.
Seguindo esta mesma linha, assinamos o Tratado de Não-Proliferação
de armas atômicas (TNP), com ressalvas quanto à manutenção dos arsenais
pelos "grandes", fomos críticos das invasões unilaterais no Iraque e só
aceitamos a intervenção no Afeganistão graças à supervisão das ações
bélicas pela ONU. A reação ao unilateralismo foi tanta que em discurso
na Assembleia Nacional da França cheguei a aludir à similitude entre o
unilateralismo e o terrorismo, provocando certo mal-estar em
Washington. Procedemos de igual modo na defesa de nossos interesses
como país em desenvolvimento. No dia em que se publicarem as cartas que
dirigi aos chefes de Estado do G-7 se verá que predicávamos desde então
maior regulação financeira no plano global e maior controle do FMI e do
Banco Mundial pelos países emergentes. Reivindicamos nossos direitos
comerciais na OMC, a começar pelo caso do algodão, e, no caso das
patentes farmacêuticas, defendemos vitoriosamente em Doha o ponto de
vista de que a vida conta mais que o lucro. Todas estas políticas
tiveram desdobramentos positivos no atual governo.
Temos, portanto, credenciais de sobra para exercer uma ação mais
efetiva na condução dos negócios do mundo. A hegemonia norte-americana
vem diminuindo pelo fortalecimento econômico dos Brics (metáfora que
abrange não só os quatro países, mas vários novos atores econômicos),
especialmente da China, pela presença da União Europeia e também vem
sendo minada pelas rebeliões do mundo árabe e muçulmano, como o próprio
governo Obama reconhece. É natural, portanto, que o Brasil insista em
sentar-se à mesa dos tomadores de decisões globais. Sendo assim, por
que a celeuma causada pela tentativa de acordo entre Irã e a comunidade
internacional empreendida pelo governo brasileiro? Há duas ordens
distintas de questões para explicar o porquê de tanto barulho. A
primeira é a falta de clareza entre a ação empreendida e os valores
fundamentais que orientam nossa política externa. A segunda é a forma
um tanto retórica e pretensiosa que ela vem assumindo.
Quanto ao primeiro ponto, como compatibilizar o repúdio às armas
nucleares com a autonomia decisória dos povos? Esta abrange inclusive o
direito ao conhecimento de novas tecnologias, mesmo as "duais", que
tanto podem ser usadas para a paz como para a guerra. Em nosso caso,
conseguimos, por exemplo, dominar a técnica de foguetes propulsores de
satélites (e quem lança satélite pode lançar mísseis). Ninguém
desconfia, entretanto, de que a utilizaremos para a guerra, até porque
obedecemos às regras do acordo internacional que regula a matéria. Do
mesmo modo, dominamos o ciclo completo de enriquecimento do urânio. Mas
não cabem dúvidas de que não estamos fazendo a bomba atômica, não só
porque nossa Constituição proíbe, mas porque inexistem ameaças externas
e porque submetemos o enriquecimento do urânio (guardado o sigilo da
tecnologia usada) ao duplo controle de um tratado de fiscalização
recíproca com a Argentina e da Agência Internacional de Energia Atômica.
É precisamente isto que falta no caso do Irã: a confiabilidade
internacional nos propósitos pacíficos do domínio da tecnologia. E é
isso que o governo americano alega para recusar a intermediação obtida,
ao reafirmar que a quantidade de urânio já disponível, mesmo descontada
a quantidade a ser remetida para enriquecimento no exterior, permitiria
a fabricação da bomba. O xis da questão, portanto, seria a obtenção
pelo Brasil e pela Turquia de garantias mais efetivas de que tal não
acontecerá. Deixando de lado as alegações recíprocas sobre se houve o
estímulo americano à ação intermediadora (que para quem quer ter uma
posição independente na política externa é de somenos), uma ação eficaz
para evitar o confronto e as sanções - posição coerente com nossa
tradição negociadora - deveria buscar desfazer a sensação da maioria da
comunidade internacional de que o governo iraniano está ganhando tempo
para seguir em seus propósitos nucleares.
Neste ponto a retórica dos atores brasileiros parece ter falhado. O
levantar de mãos de Ahmadinejad e Lula, à moda futebolística, e as
declarações presunçosas do presidente brasileiro, passando a impressão
de que havíamos dado um drible nas "grandes potências", digno de Copa
do Mundo, reforçaram a sensação de que estaríamos (no que não creio)
nos bandeando para o "outro lado". E em política internacional, mais do
que em geral, cosi è (se vi pare).
Fernando Henrique Cardoso - O Estado de S.Paulo
SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE
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