O
chanceler Celso Amorim usa o argumento da altaneria para explicar o
voto brasileiro contra as sanções aprovadas pelo Conselho de Segurança
da ONU ao Irã. "Nossa posição foi independente, não foi quixotesca.
Dizer não, em vez de se abster, era a única posição honrosa, honesta e
justa. Se tivéssemos votado de outra maneira, teríamos perdido
totalmente a credibilidade." O problema é que dois erros não fazem um
acerto. E o erro original foi o governo brasileiro, tomado por absurda
soberba, ter julgado que poderia levar o Irã a abandonar pela via
negociada o seu programa nuclear, e que a comunidade internacional,
penhorada e agradecida, passaria a acreditar nos bons propósitos de
Teerã. Resultou daí o acordo de troca de urânio levemente enriquecido,
patrocinado pelo Brasil e pela Turquia ? que só embarcou na aventura na
undécima hora ?, que o Itamaraty exaltou como o início de conversações
de boa-fé entre as grandes potências mundiais e o Irã, e as ditas
grandes potências, calejadas no trato com a república islâmica,
consideraram ser apenas mais um expediente para ganhar tempo.
O fato é que o acordo de Teerã reproduziu uma oferta feita pela
Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) um ano antes, e
rejeitada pelo Irã ? e o presidente Lula achou que essa seria a chave
para a afirmação da influência do Brasil no Oriente Médio ? melhor
dizendo, no mundo muçulmano. Seus assessores deixaram que ele
incorresse no erro, ao não alertar que a oferta da AIEA fazia sentido
quando foi feita, mas não mais um ano depois, quando o Irã havia
praticamente dobrado o seu estoque de urânio enriquecido. Além disso,
não há no acordo uma única palavra que sugira que o Irã se submeterá de
bom grado às inspeções da AIEA ? e sem isso não se desfarão as
suspeitas de que o objetivo do programa nuclear é a construção da
bomba.
A diplomacia lulista cometeu mais um grave erro de avaliação quando
tentou se imiscuir nos assuntos do Oriente Médio. Primeiro, Lula
ofereceu seus bons serviços para obter a paz entre palestinos e
israelenses ? oferta que foi recusada com rascante ironia pelas duas
partes. Depois, foi a vez do, digamos, equívoco iraniano.
Esses e outros fiascos se devem a uma interpretação enviesada da
evolução e da tendência dos acontecimentos mundiais. Em seu
antiamericanismo visceral, os assessores internacionais de Lula
acreditam que a superpotência está em declínio, que o mundo experimenta
uma fase de multipolaridade e que do diretório multipolar fazem parte
os países emergentes, com grande destaque do Brasil. E que essas
transformações já estão ocorrendo, e em velocidade vertiginosa. Ocorre
que, se é verdade que as linhas gerais desse cenário são corretas, o
ritmo das transformações é lento, como quase tudo na história.
O declínio dos Estados Unidos é lento e relativo ? o país continua
sendo, de longe, a maior potência militar e econômica do mundo ? e o
multilateralismo ainda cede às demandas e imposições da política de
poder, como comprovam os fatos do dia a dia.
Não bastasse isso, o Brasil não tem condições objetivas de agir em
regiões que estão fora de sua área de influência direta. Somente a
reconhecida capacidade de articulação dos diplomatas do Itamaraty e o
prestígio conferido ao presidente Lula por sua inegável popularidade no
exterior não são suficientes para fazer do Brasil o interlocutor
universal e o peacemaker à outrance que a propaganda oficial exalta.
Veja-se, a propósito, que o governo Lula nunca pretendeu ?
justamente por saber que não dispõe dos instrumentos para esse tipo de
tarefa ? resolver, por exemplo, o contencioso entre Argentina e
Uruguai, a respeito das papeleras, ou consertar os desarranjos
estruturais do Mercosul, ou buscar soluções para a virtual guerra civil
colombiana. E tais contenciosos afetam diretamente os interesses
brasileiros.
O presidente Lula e o Itamaraty, no entanto, sentiram-se à vontade
para querer resolver problemas no outro lado do mundo, e justamente
aqueles que, há anos ou décadas, tiram o sono das grandes potências,
incapazes de promover a paz nessas regiões. A intromissão no caso
palestino-israelense foi apenas patética. Já o envolvimento com o Irã é
perigoso porque afeta graves questões de segurança internacional, que o
Brasil não está preparado para enfrentar.
Fonte: O Estado de S.Paulo
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