Memória - O TRATOR PAROU




FHC perde o operador mais agressivo e eficiente de seu governo 



Foto: Ana Araujo
O homem que dava socos pelo tucanato calou-se. Bombardeado por uma infecção pulmonar que se uniu a uma doença crônica, o ministro Sergio Motta morreu no último domingo, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Motta não resistiu a sua quinta internação desde o início do governo. O ministro das Comunicações até que demonstrou uma incrível capacidade para resistir aos avanços de sua doença. Mas, de acordo com a opinião dos médicos, ainda que conseguisse superar a crise, estaria com a saúde severamente comprometida e não teria condições de reassumir suas funções políticas. Na sexta-feira, antes de viajar para Santiago do Chile em missão oficial, o presidente Fernando Henrique fez uma mudança no roteiro para visitar Sergio Motta no hospital. O último encontro dos dois amigos foi uma visita sem diálogos. Sob efeito de sedativos, Serjão estava inconsciente e só respirava graças a tubos que bombeavam oxigênio diretamente em seus pulmões. Fernando Henrique conversou com Wilma, mulher de Motta, e afirmou que tinha esperanças na recuperação. "Já estive ao lado do Sergio Motta em situações parecidas outras vezes e ele conseguiu sair", disse. Infelizmente, não foi o que aconteceu desta vez.
Desde que Motta foi à posse de José Serra no Ministério da Saúde segurando uma máquina de oxigênio com dois canos enfiados nas narinas para respirar um ar mais concentrado, os políticos começaram a conversar pelos corredores e a fazer apostas sobre o tempo em que ele permaneceria de pé até uma próxima internação. A morte do trator cria três grandes rombos em Brasília, o primeiro administrativo. Desde que o cargo de ministro das Comunicações foi ocupado por Antonio Carlos Magalhães, durante o governo Sarney, a pasta só teve titulares sem brilho. Até a chegada de Motta. Sacudindo a viciada máquina administrativa que encontrou ali, baixou o preço dos telefones, tornou a abertura da banda B uma realidade e conseguiu que o caminho da privatização do sistema Telebrás se tornasse irreversível. O segundo rombo está na estrutura de poder, já que Motta sempre operou como o único ministro capaz de enfrentar a oposição. O terceiro rombo é na engrenagem da campanha eleitoral. Com ele, o apoio do empresariado e as alianças regionais sempre foram selados num linguajar direto e objetivo, agradando às duas partes. "O afastamento de Motta seria o pior desfalque que o governo poderia sofrer", dizia na semana passada o deputado Luís Eduardo Magalhães, líder do governo na Câmara.
"Não tenho nada do que disseram: tumor, pressão alta, não estive na UTI e não tenho perna com problemas. Não tenho absolutamente nada"
Sergio Motta, em janeiro passado
A morte de Motta interrompe uma das mais meteóricas carreiras políticas da História recente do país. Com a mesma velocidade com que apareceu em Brasília, desapareceu na semana passada. Acompanhando o presidente como uma sombra durante duas décadas, sem jamais ter sido candidato a um cargo eleitoral, Motta transformou-se numa das figuras centrais do tucanato. Destoava da cúpula do governo. Única voz grossa da Esplanada, isso em termos figurativos, já que o ministro sempre exibia um falsete que nunca combinou com o seu corpanzil, Motta comprou briga com aliados como ACM e com os inimigos da CUT (veja frases). Até mesmo as críticas internas fazia em público. Certa vez, numa reunião com o PMDB em 1995, disse que o ministério de Paulo Renato era "um paquiderme", que a política de saúde pública era feita "na mais absoluta esculhambação" (o ministro era Adib Jatene) e que o Comunidade Solidária, gerido pela primeira-dama, Ruth Cardoso, era inoperante. "Essa, desculpe a palavra, masturbação sociológica me irrita porque não chega a nenhum resultado", disse, referindo-se ao programa social comandado pela mulher do presidente da República.
Durante a corrida eleitoral, FHC contou a amigos que iria nomeá-lo para um cargo fora do Planalto, porque o julgava muito brigão para trabalhar no Gabinete Civil ou na Secretaria Geral da Presidência. Quem conhece o presidente sabe que ele dizia isso apenas para aplacar a ira das vítimas de Sergio Motta. Ocupando espaço na base do grito, o ministro seguia dando palpites em todas as áreas do governo e fazendo a crítica com sinceridade até excessiva. Pode-se definir Sergio Motta como o integrante do governo que vocalizava de maneira direta, muitas vezes rude, aquilo que os amigos do presidente pensavam e ninguém mais tinha coragem de falar. Muitas vezes, suspeitava-se que era o próprio FHC que estava pensando pela boca de Motta. Como quem falava as barbaridades era alguém que entrava no gabinete presidencial sem se fazer anunciar e continuou entrando depois das agressões, seus inimigos aprenderam a vê-lo com algum temor. Tanto poder tinha Motta que, mesmo num episódio capaz de derrubar qualquer outro ministro, ele saiu sem nenhum arranhão. No ano passado, a imprensa divulgou o conteúdo de fitas com conversas gravadas nas quais quatro deputados do PFL do Amazonas e do Acre diziam ter recebido 200.000 reais para votar a favor da emenda da reeleição. Eles afirmavam que o dinheiro havia sido entregue pelo governador Amazonino Mendes, e sugeriam que isso teria ocorrido a mando de Motta. Ele teve a sabedoria de ficar quieto por alguns dias e o assunto caiu no esquecimento. Mesmo porque as insinuações não tiveram desdobramento no terreno dos fatos e das provas.
FHC com Wilma,
no hospital: mudança
de roteiro antes da
viagem para o Chile
Foto: Claudio Rossi  
Não se tem notícia de que o presidente se incomodasse verdadeiramente com as farpas de Serjão. Ao contrário, ele costumava ser citado como exemplo quando o presidente criticava a passividade com que alguns de seus ministros -- Pedro Malan, Clóvis Carvalho e Paulo Renato -- enfrentavam as críticas da oposição. "Ele não me defende só porque sou presidente da República, mas porque sou seu amigo. Ele dá a cara para apanhar", disse dele certa vez o presidente Fernando Henrique. Somente uma única vez FHC falou duro com o amigo. Foi quando Serjão deu uma entrevista a VEJA dizendo que a nomeação dos ministros Iris Rezende, da Justiça, e Eliseu Padilha, dos Transportes, havia sido "uma decepção", e que o PMDB "dá menos voto para o governo hoje do que dava antes da ida deles para o governo". A reação foi tão ruim que o ministro chegou a colocar seu cargo à disposição do presidente. Fernando Henrique, porém, acabou poupando o subordinado. Motta arrumava confusão, mas também sabia ser diplomático quando necessário. Depois de trombar de frente com Antonio Carlos Magalhães, marcou secretamente um encontro de conciliação em Brasília. ACM, então, pediu a um amigo para que levasse alguns jornalistas para flagrar o encontro secreto. Pretendia mostrar que o mesmo Motta que batia em público fazia as pazes no privado. Motta chamou ACM de senhor e, em troca, foi chamado de você. A conversa, presenciada de longe pelos jornalistas, era tensa. Dedos em riste, os dois se agrediam sem levantar o tom de voz. No final, quando se esperava que trocassem tapas, os dois deram um abraço e fizeram as pazes, de verdade. "Já brigamos muito, mas hoje Serjão é um dos meus melhores amigos. Ele é um homem afetivo, sincero e está fazendo falta. Espero que ele se recupere logo", dizia o presidente do Senado, na semana passada.
Com a garrafinha
de oxigênio, em
Brasília: saúde precária
Foto: Ricardo Stuckert  
A vocação de Motta para a confusão vinha desde criança, quando, ainda estudante, foi expulso do Colégio São Bento, administrado por padres beneditinos. Junto com outros colegas, ele usava o sistema de alto-falantes da escola para gritar palavrões e irritar os padres. Não gostava da comida servida no colégio, embrulhava os restos recolhidos do prato e jogava tudo pela janela sobre as mesas de jogos dos padres. Filho de um técnico em radiologia, da classe média baixa paulistana, Motta estudou em bons colégios particulares e conseguiu formar-se em engenharia na Faculdade de Engenharia Industrial, FEI. Na faculdade, gostava sobretudo do que acontecia fora da aula, no centro acadêmico: agitação política. Metido até o pescoço na política estudantil dos anos 60, entrou para a Ação Popular, uma organização de esquerda de influência católica que também abrigou os ministros José Serra e Clóvis Carvalho, o sociólogo Herbert de Souza e o ministro do Supremo Tribunal Federal Sepúlveda Pertence. Foi lá que ele conheceu sua mulher, Wilma. Com o golpe de 1964, boa parte dos militantes da AP caiu na clandestinidade ou foi para o exílio. Motta ficou e chegou a ser preso em 1965, quando passou nove dias na cadeia depois que a polícia o flagrou em uma reunião clandestina.
Nos anos mais pesados da ditadura, quando a maioria dos dirigentes da organização aderiu à luta armada, Motta saiu da AP e decidiu cuidar da vida. Virou sócio de uma empresa de engenharia, a Hidrobrasileira, que participou da construção do metrô de São Paulo e deu abrigo a militantes perseguidos e exilados que voltavam ao país. Os negócios nunca afastaram Motta da política. Também nunca o deixaram sem tempo para se envolver com os mais variados projetos. Nos anos 70, patrocinou peças teatrais e ajudou a financiar o jornal Movimento, um dos principais veículos da imprensa alternativa dos anos 70. Foi lá que conheceu Fernando Henrique, colaborador assíduo do jornal. Tornaram-se amigos e Motta participou de todas as campanhas eleitorais de FHC. Sua atuação foi decisiva em 1994. Arranjou dinheiro com empresários, comandou o comitê eleitoral e montou até um serviço de espionagem para acompanhar a campanha adversária, do petista Luís Inácio Lula da Silva. Ironicamente, boa parte da esquerda acostumou-se nos últimos anos a ver Motta como um aliado em potencial, um contrapeso à influência do PFL dentro do governo. "Motta era meu amigo pessoal e fará falta", diz Lula. "Espero que a truculência do ACM não substitua a truculência dele."
"A falta de Sergio Motta seria o pior desfalque que o governo poderia sofrer"
Luís Eduardo Magalhães, líder do governo na Câmara
Motta foi decisivo nas pressões para a eleição dos dois últimos presidentes da Câmara, Luís Eduardo Magalhães e Michel Temer, e na condução de Antonio Carlos Magalhães à presidência do Senado. Também intermediou as conversações entre o presidente e o senador José Serra para que ele aceitasse o Ministério da Saúde. No caso, convenceu os dois lados -- FHC a repetir o convite, depois de uma recusa, e Serra a aceitar a proposta. Às vésperas da votação da emenda da reeleição de FHC na Câmara, participou de todas as reuniões dos líderes governistas e comandou diretamente a operação de cooptação dos aliados rebeldes. Lista de deputados e caderninho de anotações na mão, ele passava os dias telefonando para ministros, presidentes de estatais e governadores, exigindo o cumprimento de promessas de verbas, cargos e favores feitas aos deputados. Com os adversários, era duro. "Aqui para eles", dizia para os líderes governistas nas reuniões, fazendo um gesto obsceno. "O ministro usava o porrete como instrumento de negociação, mas era generoso e sempre fazia as pazes com elegância e carinho", diz o deputado Arthur Virgilio, secretário-geral do PSDB.
Com sua morte, o governo teme pela falta de alguém com tamanha capacidade de trabalho. Para ocupar as cadeiras que Motta deixa vazias, Fernando Henrique precisou de três nomes. Determinou que o Ministério das Comunicações fosse entregue ao atual secretário executivo, Juarez Quadros. Para coordenar a privatização da Telebrás, designou um dos melhores amigos de Motta, o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, presidente do BNDES. E, para ocupar o lugar que caberia a Serjão como coordenador da campanha da reeleição, Fernando Henrique Cardoso apontou Eduardo Jorge Caldas, secretário-geral da Presidência. Quando os boletins médicos começaram a ficar desanimadores, a direção do PSDB começou a tomar as suas providências. Reuniu-se duas vezes na semana passada, chegando à conclusão de que não seria prudente incluir o ministro nos planos do partido. Na melhor das hipóteses, raciocinaram, ele seria forçado a uma aposentadoria precoce. Poderia então se tornar um conselheiro informal do presidente. Os tucanos deliberaram sobre os primeiros passos da campanha e decidiram pressionar o governador do Ceará, Tasso Jereissati, para que ocupasse o lugar de Motta na coordenação política do governo. O encaminhamento da discussão mostra como é difícil substituir o trator. Como Tasso quer reeleger-se governador e não está disposto a abdicar da candidatura, chegou-se a sugerir que, depois de eleito governador, ele renunciasse para assumir o Gabinete Civil no segundo mandato do presidente. Clóvis Carvalho, atual ocupante do cargo, seria deslocado para as Telecomunicações.
"O Sérgio Motta compra as brigas que o Fernando Henrique não acha conveniente comprar."
Moreira Franco, ex-governador do Rio de Janeiro
Fernando Henrique já tinha sido avisado que não poderia mais contar tanto com Motta, mesmo se ele tivesse superado a crise e saído vivo do hospital. Fora os problemas no pulmão, o ministro sofria de hipertensão e diabete e já tinha três pontes de safena no coração. Aos 57 anos, obeso (tem 1,79 metro e 115 quilos), fanático por comida pesada e fã de um drinque no final do expediente, ele era um paciente indisciplinado. Conforme contou a amigos, tinha o hábito de aumentar, por conta própria, as doses de insulina que ingeria para controlar a diabete, acreditando que assim poderia abusar da comida e do uísque. Fanático por trabalho, dormia pouco e era incapaz de relaxar, mesmo depois do infarto que sofrera em setembro de 1995. O excesso de trabalho e a resistência em seguir os conselhos dos médicos contribuíram muito para agravar a doença que o matou, uma infecção que reduzia sua capacidade respiratória. Na sexta-feira, um exame de raios X revelou aos médicos que os dois pulmões do ministro estavam completamente inflamados. Mesmo ligados a tubos que bombeavam oxigênio, os pulmões de Motta já tinham perdido a capacidade de trocar gás carbônico por oxigênio. Os aparelhos de respiração artificial só conseguiam manter sua taxa de absorção de oxigênio num patamar abaixo do necessário. Não havia mais nada a fazer.

AS FARPAS DE SERGIO MOTTA

"A Erundina foi péssima, está prepotente pra burro, deve ser a idade, a menopausa."
(sobre a candidata Luiza Erundina, na disputa pela prefeitura de São Paulo, em outubro de 96)
"Ele fez uma plástica nos olhos, mas é impossível fazer plástica na alma e na consciência."
"Ele é o único a criar uma palavra: malufar significa roubar no Brasil."
(ao criticar Paulo Maluf, então prefeito de São Paulo, em setembro de 96)
"Essa masturbação sociológica me irrita."
(criticando o programa Comunidade Solidária, presidido pela primeira-dama Ruth Cardoso, em abril de 95)
"Precisa manter a Vale por quê? Para dar dinheiro para alguns municípios? Para a CNBB e o dom Luciano Mendes de Almeida, ex-presidente da entidade, receberem a sua graninha."
(sobre a venda da então estatal Vale do Rio Doce, em abril de 97)
"Falei demais, é verdade. Mas às vezes alguém precisa falar."
(sobre a repercussão de sua entrevista à revista VEJA, quando fez críticas ao governo, em julho de 97)
"Desculpe-me, presidente. Foi incontrolável."
(em cerimônia oficial no Palácio do Planalto, constrangendo o presidente da República ao lançar a recandidatura de FHC, em julho de 97)
"Só se pode conversar na sauna pelado."
(sobre o perigo de ter as conversas registradas por alguém com gravador escondido por baixo do paletó, em maio de 97)
"O PT é o cúmulo do reacionarismo. O PT não é democrático. Eles deveriam ler um pouco, só lêem livros socialistas."
(em conversa com jornalistas, em abril de 97)
"Confesso que até usava vocês para checar o mercado."
(ao admitir que fez declarações especulativas sobre a privatização das Teles, em novembro de 96)
"Eu xingo e o presidente faz cara de paisagem."
(sobre seus ataques a adversários políticos, em setembro de 96)
"Não podemos eleger um produto, um iogurte, um cara que foi selecionado pelo departamento de pessoal da Eucatex."
(ao criticar Celso Pitta, candidato à prefeitura de São Paulo, em agosto de 96)
"O presidente tem o saco preto."
"Tenho orgulho porque o Fernando Henrique foi o único presidente nos últimos cinqüenta anos que teve coragem de colocar em indisponibilidade os bens de seus netos."
(elogiando FHC por ter bloqueado os bens dos parentes, donos do Banco Nacional, em março de 96)
"Já estou tendo sonhos eróticos com a reeleição."
(em fevereiro de 96)
"Vou ficar mais gostoso do que já sou."
(sobre seus planos de emagrecer 15 quilos, em novembro de 95)
"Brasília é um horror. Só tem lobista e pilantra."
(em junho de 96)
"Aquele ministério era uma zorra. Tinha agenciadores andando pelos corredores."
(sobre o Ministério das Comunicações, em junho de 95)
"Eram em grandes tetas como essas que as velhas elites brasileiras mamavam no passado."
(nos Pirineus, a caminho da França, olhando uma vaca que pastava nos campos, em junho de 97)
"Manda botar veneno na comida dele."
(ao saber que o ex-presidente Itamar Franco almoçava no mesmo restaurante que ele, em julho de 97)
Foto: Ana Araujo







Fonte: Expedito Filho e Karina Pastore - Veja 22-04-98

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