Voto solitário, mas exemplar - O Estado de S. Paulo


Editorial  O Estado de S. Paulo
Domingo, 28 de Fevereiro de 2010

Ao votar o projeto que prevê a criação de um fundo social de longo prazo a ser constituído por recursos da produção e comercialização do petróleo da camada do pré-sal, a Câmara dos Deputados aprovou, por 356 votos contra 1, uma emenda contrária ao que vinha sendo defendido pelas lideranças governistas. Pela proposta do governo, que havia passado recentemente pela comissão especial, graças ao empenho do relator Antonio Palocci (PT-SP), esse fundo seria usado para financiar programas de desenvolvimento da educação, cultura, saúde, ciência e tecnologia, além de políticas de combate à pobreza.

Mas, por iniciativa do deputado Márcio França (PSB-SP), da base governista, a Câmara decidiu que 5% do fundo será usado para recompor perdas das aposentadorias superiores a um salário mínimo. A emenda pegou desprevenidos líderes governistas, atrasou a votação do marco regulatório do pré-sal e foi considerada uma "barbaridade jurídica" por Palocci. Não faz sentido embutir mudanças nas regras da aposentadoria numa lei que trata de petróleo, disse ele. Apesar de ter oferecido um acordo, apresentando um substitutivo concebido às pressas para reduzir ao mínimo a vinculação de recursos do pré-sal ao orçamento da Previdência, a iniciativa não encontrou apoio nem entre seus colegas de partido.

Com isso, a "barbaridade jurídica" proposta por França foi aprovada, tendo sido aclamada como a "maior vitória dos aposentados" nos últimos anos. "O governo diz que não há dinheiro para atender os aposentados que ganham valor maior do que o mínimo. A tecnologia que levou ao pré-sal foi conquistada por muita gente que está aposentada. No dia em que o País ficar rico com o pré-sal, é justo atender esses trabalhadores", disse o parlamentar, apoiado por governistas e oposicionistas.

No único voto discordante, o deputado Arnaldo Madeira (PSDB-SP) questionou esse argumento. Se o Brasil ainda não ficou rico com o pré-sal, perguntou ele, como vincular o que ainda não saiu do papel em matéria de energia a questões previdenciárias? "A situação é kafkiana. Estamos discutindo o fundo de um recurso que ainda não existe e, quando existir, nem sabemos qual será o montante", disse ele, depois de acusar os colegas de aprovarem uma emenda demagógica para cortejar o eleitorado com vistas à reeleição.

Madeira está em seu quarto mandato na Câmara e vai disputar a reeleição. Ao justificar seu voto solitário, afirmou que o risco de desagradar ao eleitorado faz parte de uma atuação parlamentar consequente. "Estamos votando projetos que redundam em gasto público. Não vejo ninguém preocupado em saber como vamos pagar e de onde vem o dinheiro. Essa coisa de determinar aumentos de salários e aposentadorias é fácil e bonita, mas quem arca com as consequências são os futuros contribuintes. Ao criar mais gastos, estamos inviabilizando a redução da carga tributária", concluiu.

O comportamento de Madeira é incomum no Legislativo, onde os anos eleitorais sempre foram oportunidade para farta gastança. O governo Lula reforçou essa tradição quando propôs a votação do projeto do fundo social do pré-sal a sete meses de uma eleição. E não é só esse projeto, que se presta à demagógica e irresponsável criação de despesas permanentes, que está na pauta da Câmara. Lá estão à espera de votação, por exemplo, projetos que equiparam o piso salarial dos policiais militares dos Estados com os do Distrito Federal, garantem titularidade a cartorários nomeados sem concurso público e transformam a carreira de delegado em carreira jurídica, nos moldes da magistratura. Recentemente, o ministro do Planejamento teve de persuadir a Câmara a rejeitar dois projetos de reajustes de servidores, de autoria de membros da base governista, que teriam um impacto no orçamento de R$ 7 bilhões.

Ao criticar duramente a tradição demagógica e sustentar que matérias como reajuste salarial, aumento de aposentadoria e criação de cargos não deveriam ser votadas em anos eleitorais, o deputado Arnaldo Madeira se destacou como um solitário defensor da responsabilidade fiscal e da austeridade administrativa.

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