O mundo político virou a chave

Bolsonaro grita e a caravana passa. Lideranças políticas se mobilizam para isolar espasmos golpistas e já se movimentam orientadas pela mudança do centro gravitacional do poder

Jair Bolsonaro 

Editorial - Estado de S.Paulo 

Os irresignáveis à derrota do presidente Jair Bolsonaro podem continuar esperneando por tempo indeterminado. O próprio mandatário pode seguir lançando suspeitas sobre a lisura da eleição e estimulando à sua maneira a insurgência de seus camisas pardas. O fato é que Bolsonaro grita e a caravana passa. À luz do dia, o mundo político se mobiliza para isolar os últimos espasmos golpistas e já se movimenta orientado pela mudança do centro gravitacional do poder. Em Brasília, Bolsonaro representa o passado; o petista Luiz Inácio Lula da Silva, o futuro. 

Evidentemente, ainda é muito cedo para saber como será o terceiro mandato de Lula como presidente da República. Há, no entanto, sinais de que a política, como a arte da negociação de interesses e prioridades por vezes conflitantes, pode ser resgatada depois desse longo inverno da antipolítica bolsonarista. Nos últimos quatro anos, Bolsonaro subverteu as regras mais comezinhas do diálogo institucional e republicano entre políticos e entre instituições, o que resultou em retrocessos sociais e econômicos de tal ordem que custaram a sua reeleição. 

Traquejados negociadores políticos, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, todos bolsonaristas empedernidos até pouquíssimos dias atrás, já abriram canais de diálogo com emissários do futuro governo. A nenhum desses atores políticos interessa a instabilidade gerada pelas birras golpistas de Bolsonaro. 

Enquanto o presidente continua a considerar legítimas as manifestações dos delinquentes que demandam um golpe militar, Arthur Lira já trata com integrantes da equipe de Lula sobre o encaminhamento de medidas prometidas pelo petista durante a campanha. Ciro Nogueira, por sua vez, foi quem deu início oficial à transição de governo. Por fim, Valdemar Costa Neto pode até ter prometido pagar as contas de Bolsonaro – de olho, é claro, no robusto capital eleitoral do presidente –, mas é inimaginável ver o prócer do Centrão cerrando fileiras com a oposição ao petista a partir de janeiro. Gilberto Kassab, presidente do PSD, e Marcos Pereira, do Republicanos, são outras lideranças políticas experientes que dificilmente não comporão de alguma forma com a nova administração federal. 

Lula tem plena consciência de que sua vitória não foi uma chancela da maioria dos eleitores à agenda do PT. O petista sabe que precisará negociar com todas essas forças políticas não ligadas ao bolsonarismo mais radical, no Congresso e fora dele, se quiser realizar um governo minimamente funcional. Nesse sentido, foi providencial a nomeação de Geraldo Alckmin, um vistoso não petista, como coordenador da equipe de transição de governo. Seria natural, até esperado, que algum “companheiro” petista ocupasse o posto. Mas, ao nomear Alckmin, Lula tenta sinalizar que fala sério quando diz que o futuro governo não será do PT – algo que ainda não é muito fácil de acreditar. Seja como for, a imagem de moderação e de boa articulação de Alckmin na transição é um claro contraste com os conflitos estimulados por Bolsonaro ao longo de todo o seu tenebroso mandato. 

Manda a prudência que o País se abstenha de grandes expectativas sobre o próximo governo, sobretudo quando se recorda da má-fé de Lula, que, na sua primeira passagem pelo poder, desqualificou todos os governos anteriores e dividiu a sociedade em “nós” e “eles” – semente, aliás, do ressentimento que cevou o bolsonarismo. Mas é fato que, em seus primeiros passos, o time do petista indica que está sendo gestado um governo “normal” – o que seria um estrondoso avanço. 

A eleição do petista Lula da Silva se descortina como uma volta à política dita tradicional, aqui entendida como a negociação de espaços de poder e agenda baseada em consensos mínimos. Que assim seja, pois são enormes os desafios sociais, fiscais e políticos que o governo que se avizinha terá de enfrentar. E só a boa política será capaz de oferecer a estabilidade que o País tanto precisa para superá-los.

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