A boa política e a má política

O novo governador paulista precisará negociar com o novo presidente muitos projetos sabotados por seu ex-chefe. Será um teste à disposição de ambos de promover a boa política

Lula e Tarcísio

O Estado de S.Paulo

Para cumprir parte de suas promessas em São Paulo – como a ligação Santos-Guarujá, a concessão da Hidrovia Tietê-Paraná ou a construção de moradias populares –, o governador eleito Tarcísio de Freitas (Republicanos) precisará do aval do governo Lula.

Numa república federativa, a articulação entre um governador e seu presidente seria mera rotina se, nesse caso, ela não fosse marcada por uma reveladora ironia. Muitos desses projetos estão empacados por recalcitrâncias do presidente Jair Bolsonaro que nada tiveram a ver com divergências sobre o interesse público, mas serviram apenas para sabotar o ex-governador João Doria, enquanto figurava como adversário de Bolsonaro nas eleições de 2022. Se a política é a arte de construir consensos em prol do bem comum, Bolsonaro promoveu o seu inverso: a imposição do arbítrio a favor de interesses particulares. A ironia é que Tarcísio, enquanto ministro de Bolsonaro, foi responsável por muitos desacertos que agora precisa consertar, necessitando para isso da boa vontade de um presidente do lado oposto do tabuleiro político.

Não que não se deva esperar divergências na democracia. Ao contrário, ela não só é, como disse Winston Churchill, a forma de governo menos ruim, como a mais plural. Na verdade, é a melhor exatamente porque é a mais plural. E o custo da pluralidade é a constante disputa de ideias e o risco de cisão social. Por isso, nela, a boa política é mais, não menos importante.

A democracia, na célebre definição de Abraham Lincoln, é o governo do povo, pelo povo, para o povo. Mas “povo” se diz em muitos sentidos. Do mais amplo ao mais estrito, ele é tanto a comunidade dos cidadãos que morreram, que vivem e que nascerão quanto só a dos vivos e, finalmente, a da maioria entre eles. No primeiro sentido, o povo é a Nação, cuja alma está inscrita na Constituição, que por sua vez se corporifica no Estado a serviço de todos, que por sua vez é conduzido e regulado pelos representantes eleitos pelas maiorias no Executivo e no Legislativo.

Bolsonaro inverteu essa ordem, submetendo o governo a interesses pessoais e corporativos e as políticas de Estado aos interesses do governo, que, para tanto, submeteu a Constituição a todo tipo de interpretações abusivas e tentativas de subversão. Há quatro anos, ele subia ao poder hostilizando o Legislativo. A relação com o Parlamento, dizia, se daria por “bancadas temáticas”, e cargos seriam distribuídos só por critérios técnicos sem negociações partidárias. Logo se viu que as nomeações só serviam para satisfazer suas bases eleitorais. Com o fracasso dessa má política, o governo se viu obrigado a prestar vassalagem à ala fisiológica do Congresso, nutrida com pedaços do Orçamento público. Enquanto acalentava amizades artificiais no Congresso, Bolsonaro criava inimizades artificiais em outras esferas do poder público, como juízes e governadores.

Muito antes, o PT já praticava essa lógica de “amigos e inimigos”. O partido nunca hesitou em sobrepor seu projeto de poder ao interesse público, por exemplo, sabotando, quando na oposição, políticas do governo e manietando, quando no governo, o voto de parlamentares (no mensalão), a máquina estatal (no petrolão) e as contas públicas (na pior recessão da história).

Agora, Tarcísio e Lula se dizem arautos de uma “nova política”. Tarcísio seria a face técnica e moderada do conservadorismo. Lula, mesmo sem admitir os abusos do PT, insinua que foram desvios e não resultados de uma coordenação programática, e que, de todo modo, agora será diferente, não o governo de um partido, mas de uma “frente ampla” progressista.

Enquanto isso, São Paulo, a locomotiva econômica do Brasil, continua esperando que impasses entre o governo federal e o estadual sejam destravados. A capacidade do Palácio do Planalto e do Palácio dos Bandeirantes de criarem consensos em favor do interesse público – ou, caso contrário, de justificarem suas divergências conforme esse interesse – será um teste para saber se seus líderes têm vocação de estadistas ou se são apenas representantes da demagogia de sempre.

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