Tesourada na saúde popular

Corte de recursos do Farmácia Popular no Orçamento de 2023 é terrível, mas não surpreende, ante o histórico de desprezo de Jair Bolsonaro pela saúde dos mais necessitados

Jair Bolsonaro

O Estado de S.Paulo

Em mais um golpe contra a saúde dos brasileiros, o presidente Jair Bolsonaro decidiu cortar cerca de 60% da verba do Programa Farmácia Popular, destinado à distribuição de remédios gratuitos ou parcialmente financiados pelo governo, além de fraldas geriátricas. Fixado inicialmente em R$ 2,04 bilhões, o gasto previsto para esse programa foi reduzido na proposta orçamentária de 2023, enviada ao Congresso no fim de agosto. Com isso, dificulta-se o acesso a medicamentos para hipertensão, diabetes e asma, entre outras doenças, enquanto se preservam os muitos bilhões do orçamento secreto, mantido graças ao entendimento entre o chefe de governo e seus apoiadores do Centrão. Todos os produtos da Farmácia Popular servem para o tratamento de problemas muito disseminados. 

Se o corte de recursos for mantido, ficará ameaçada até a sobrevivência da Farmácia Popular, advertiram técnicos do governo citados pelo Estadão. A ação do governo como grande comprador facilitou, lembraram essas fontes, o barateamento de produtos muito importantes para a saúde de milhões de pessoas. Será importante considerar também esse detalhe durante a tramitação da proposta orçamentária – se houver, é claro, um número razoável de parlamentares interessados em discutir questões tão importantes para a população. Esse tipo de preocupação tem sido raramente notado durante a tramitação de projetos orçamentários. 

Sem o apoio do programa, pessoas dependentes dessa distribuição acabarão recorrendo ao Sistema Único de Saúde (SUS), em busca de medicamentos de uso continuado e, portanto, essenciais para a manutenção de condições mínimas de segurança. O risco dessa migração foi apontado por Telma Salles, presidente da PróGenéricos, associação de laboratórios do setor. Se isso ocorrer, uma grande pressão será deslocada para um serviço público já comprometido com uma tarefa complexa, custosa e de grande alcance social. 

Embora terrível, a nova exibição de desprezo à saúde pública pelo presidente Jair Bolsonaro nada tem de surpreendente. Ao contrário, é perfeitamente compatível com seu currículo. Há poucos dias, o presidente encenou uma autocrítica ao lembrar sua reação a uma pergunta sobre a mortandade durante a pandemia. “Não sou coveiro”, foi sua resposta, naquele momento. Com enorme atraso e, além disso, a poucas semanas da eleição, ele ensaiou um lamento: “Eu dei uma aloprada, sim. Eu aloprei e perdi a linha”, disse o presidente numa conversa com influenciadores evangélicos. 

Há uma escandalosa desproporção entre essa aparente autocrítica e o drama dos brasileiros na pior fase da pandemia. Não houve uma “aloprada” passageira e contida nos limites de uma entrevista, num dia qualquer de 2020. Houve, sim, um desastre ocasionado pela maior crise sanitária em cerca de um século, num país sujeito a um chefe de governo indiferente ao sofrimento e às mortes. Houve a atuação devastadora de um Ministério da Saúde conduzido de forma incompetente, irresponsável e devastadora. Houve um presidente empenhado em recomendar terapias ineficazes, em propagar informações falsas, em combater as ações mais prudentes de governadores e prefeitos e em retardar e dificultar a vacinação. 

Não adianta esse presidente dizer-se arrependido de algumas palavras infelizes, quando ele continua, em arranjos com o Centrão, agindo contra o bem-estar e o desenvolvimento. Nem os gastos com educação infantil e construção de creches foram sustentados em seu mandato. Quem poderá acreditar em seu lamento, quase no fim da campanha eleitoral, quando todos devem lembrar-se de sua mensagem mentirosa sobre vacina anti-covid e HIV? 

A proposta de Orçamento para 2023, com a tesourada na verba da Farmácia Popular, é mais uma confirmação, em nada surpreendente, do padrão bolsonariano de uso do poder. Quase quatro anos depois de assumir a Presidência, Bolsonaro reafirma dia a dia sua preferência pelos piores e seu desprezo à boa gestão, à prosperidade sustentável e, é claro, a valores como educação, cultura, ciência e saúde pública.

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