"É assustador 3", artigo de Pedro Malan

Brasil precisa superar este quadriênio, sem acreditar que existe outro tipo de messianismo salvacionista

Pedro Malan

O Estado de S.Paulo 

Escrevo este artigo sob vívida lembrança do 7 de setembro de 2021 e de seu importante day after, no qual Bolsonaro fez um recuo tático, sem abandonar sua estratégia. O recente 7 de setembro foi, como o anterior, cuidadosamente preparado. Com uma diferença chave: agora estávamos a 25 dias do dia da eleição. E o presidente conseguiu transformar o que deveria ser uma cerimônia cívica, data festiva para todos os brasileiros, em ato de campanha política. Um grande e inusitado comício no exercício do cargo, para captar imagens e mostrar ao Brasil e ao mundo quão popular é Bolsonaro junto de seu “povo”. 

“É possível enganar algumas pessoas todo o tempo; é também possível enganar todas as pessoas por algum tempo; o que não é possível é enganar todas as pessoas todo o tempo.” A piada construída sobre a famosa frase de Abraham Lincoln não é menos relevante; um candidato à Presidência dos EUA teria dito: “Mas eu não preciso enganar a todos, bastam-me metade mais um dos votos válidos no dia das eleições. Depois, deixe comigo (leave it to me)”. 

A estratégia do atual presidente parece clara. Suponha o leitor que a eleição não seja decidida no primeiro turno. Quanto menor a diferença de votos entre Lula e Bolsonaro, supondo que a favor do primeiro, maior a probabilidade de questionamentos sobre o resultado das urnas. A senha vem sendo dada há muito tempo: Bolsonaro respeitará o resultado das eleições, “desde que estas sejam limpas e transparentes”. No dia 8 foi mais explícito: “Alguém acredita que numa eleição limpa o Lula ganha?”. Assustadora polarização. 

Trump foi mais longe: reconheceria o resultado, “se eu ganhar”. Hoje são conhecidos, graças à séria investigação do Congresso norte-americano, os esforços desesperados do ex-presidente dos EUA – com Steve Bannon, o modelo inspirador do núcleo duro de Bolsonaro – para fazer vingar a tese de que as eleições de 2020 nos EUA haviam sido fraudadas. Mais da metade dos republicanos até hoje acredita nisso. Moisés Naim (citei em artigo neste espaço – Quadriênios: Trump e Bolsonaro) assim expressou sua perplexidade a propósito da votação de Trump em 2020, 10 milhões acima daquela com que havia derrotado Hillary Clinton quatro anos antes: “São 74 milhões que não se importaram em votar num presidente que mente de forma compulsiva, constante e facilmente verificável. Que não acreditam que Trump seja um mentiroso, ou que não se importam com isso, ou têm necessidades e esperanças mais importantes”. 

Como escreveu Max Weber, “a entrega ao carisma do profeta, do caudilho na guerra ou do grande demagogo não ocorre porque a mande o costume ou a norma legal, mas porque os homens creem nele”. Isaiah Berlin notou que essa “entrega ao carisma” se dá porque os seres humanos precisam acreditar que “em algum lugar, no passado ou no futuro, em revelação divina ou na mente de um pensador individual, nos pronunciamentos da História ou da ciência, há uma solução final”. Uma quimera que alguns sempre buscarão, à “esquerda” e/ou à “direita”. Nessa busca, muitos se entregam a lideranças carismáticas que, todas – o profeta, o caudilho ou o demagogo –, têm predisposição autoritária ou autocratizante; que sempre definem com clareza “o inimigo” e cobram lealdade absoluta de seus seguidores; que os mantêm permanentemente mobilizados – no mundo moderno, por meio do uso competente de suas redes sociais. 

Marcus André Melo chamou a atenção para o paradoxo: “Um chefe do Estado populista irá se deparar com um sistema institucional que imporá limites à sua discricionariedade. E o apoio do bloco só existirá se o presidente for popular”. Política, afinal, é expectativa de poder, de preservação de espaços ocupados e de expectativas de espaços por ocupar. Depois que Bolsonaro teve de se render ao poder do “centrão”, em meados de 2020, o Congresso Nacional aumentou consideravelmente seu poder político e o controle sobre fatias crescentes do Orçamento. Não é coisa pouca. As emendas parlamentares de 2020 a 2022 somam R$ 82,3 bilhões. Para 2023, representam 32% do total de emendas e demais gastos discricionários (R$ 38/118 bilhões) – em 2022 devem ser 24%. O próximo governo, qualquer que ele seja, terá de enfrentar pesadas heranças, inclusive na área de finanças públicas, que será preciso equacionar com credibilidade, para que o Brasil possa voltar a crescer de forma sustentável. 

Este é o terceiro artigo publicado neste espaço em 2022 sob o mesmo título. O segundo, de abril, terminava citando Anne Applebaum: “Os freios, filtros e contrapesos das democracias constitucionais ocidentais jamais garantiram estabilidade. Eles sempre exigiram certa tolerância pela cacofonia e pelo caos, assim como certa disposição em reagir às pessoas que criam cacofonia e caos”. Concluía afirmando que as eleições de 2022 constituem teste especialmente relevante para a capacidade e a disposição de nossa democracia constitucional para reagir à cacofonia e ao caos. Faltou adicionar: bem como a táticas e estratégias destinadas a solapá-la. 

O Brasil precisa superar este quadriênio, sem acreditar que existe outro tipo de messianismo salvacionista. Seria assustador. 

*PEDRO S. MALAN -  ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC. E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM

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