Corrupção no governo Bolsonaro: Milton Ribeiro autorizou pastores a negociarem contratos de obras em troca de propina

Empresário Ailson da Trindade diz que então ministro deu aval para que pastores do ‘gabinete paralelo’ negociassem R$ 5 milhões de propina para reformas de igrejas

Bolsonaro e Milton Ribeiro

Vinícius Valfré e Julia Affonso - Estadão

O ex-ministro da Educação Milton Ribeiro deu aval para que contratos de obras federais de escolas fossem negociados em troca de propina para os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura, disse ao Estadão o empresário do setor da construção civil Ailson Souto da Trindade, candidato a deputado estadual pelo Progressista no Pará. O acordo previa que o dinheiro vivo, segundo Trindade, seria escondido na roda de uma caminhonete para ser levado de Belém (PA) até Goiânia (GO), onde está a sede da igreja dos pastores. A propina cobrada era de R$ 5 milhões.



A denúncia traz novos elementos para o inquérito que tramita sob sigilo no Supremo Tribunal Federal (STF) por indícios de interferência de Jair Bolsonaro (PL) na investigação contra o ex-ministro da Educação. O caso já resultou na prisão de Milton Ribeiro e de dois pastores. A investigação policial foi aberta após o Estadão revelar, em março, a existência de um “gabinete paralelo” no MEC controlado por Gilmar e Arilton para facilitar o acesso à pasta. Prefeitos relataram que os pastores cobravam propina em dinheiro, compra de bíblias e até em ouro para liberar verbas e acesso ao ministro.

O empresário é a 12ª pessoa a relatar esquema de corrupção na pasta. Em entrevista gravada concedida ao Estadão, ele sustentou ter ouvido do então ministro, no MEC, em 13 de janeiro do ano passado, que obras públicas estariam garantidas a ele. Segundo relato do empresário, o ministro teria dito que ele precisaria em troca “ajudar” a igreja dos pastores. O acerto, diz Ailson da Trindade, foi lhe dito em seguida pelo pastor Gilmar: o repasse de R$ 5 milhões em dinheiro vivo.

“Funcionou assim: o ministro fez uma reunião com todos os prefeitos (no prédio do MEC, dia 13 de janeiro de 2021). Depois houve o coquetel, num andar mais acima. Lá, a gente conversou, teve essa conversa com o ministro. Eu não sabia nem quem era o ministro. Ele se apresentou: ‘Eu sou Milton, o ministro da Educação, e o Gilmar já me passou o que ele propôs para você e eu preciso colocar a tua empresa para ganhar licitações, para facilitar as licitações. Em troca você ajuda a igreja. O pastor Gilmar vai conversar com você em relação a tudo isso’, relata o empresário.

A propina seria mascarada por meio de um contrato fictício firmado entre a igreja de Gilmar e a empresa de Trindade. “Eles falaram: ‘existe uma proposta para tu fazer isso (as obras)’. Aí eu disse: ‘que proposta?’. ‘Bom, a gente está precisando reformar umas igrejas e estamos precisando também construir alguns templos, no Maranhão, no Pará, e também outros lugares. Então estamos precisando de R$ 100 milhões para fazer isso’. Aí eu falei: ‘mas o que que eu vou ganhar em troca? Como é que vai acontecer? A igreja vai contratar minha empresa?’ ‘Não, a gente faz um contrato, entendeu? Faz o contrato com a empresa, a igreja contrata a tua empresa e eu consigo articular para tua empresa fazer as obras do governo federal’”, teria dito Ailton, conforme narrou o empresário.

O primeiro compromisso de Milton Ribeiro, a 13 de agosto, foi informado na agenda pública como “café da manhã com prefeitos - alinhamento político”. Os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura aparecem na relação de presentes. O empresário Trindade não está listado como participante do encontro, mas apresentou fotos feitas durante a reunião. Os registros oficiais de visitantes no MEC mostram que ele entrou no prédio às 9h06 daquele dia.

O diretor do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Marcelo Ponte, também participou da reunião. Após o almoço com prefeitos e antes de pegarem a estrada rumo Goiânia, o empresário conta que foi levado pelos pastores à sede do FNDE – órgão com orçamento bilionário controlado pelo Centrão e alvo de denúncias de corrupção. “Eles me levaram no FNDE, um outro prédio. Era um rapaz novo, não sei se era presidente ou diretor. Falaram: ‘olha tá tudo certo’, mas não tinha um documento que provasse que teria as obras”, relata.


BOLSONARO

Depois que o escândalo foi revelado, houve uma preocupação generalizada sobre os desdobramentos do caso. Trindade conta que telefonou para o pastor Arilton Moura pedindo para que tivesse o nome poupado, uma vez que não deu continuidade ao esquema. Ele mostrou ao Estadão o print de uma chamada de áudio feita para Arilton que durou cerca de 6 minutos. A ligação, segundo ele, não foi gravada.

A investigação sobre este caso foi enviada ao STF por suspeita de interferência de Jair Bolsonaro em uma outra frente de apurações. Milton Ribeiro contou à filha, em uma ligação grampeada pela Polícia Federal, que havia sido alertado pelo presidente sobre a possibilidade de ser alvo de um mandado de buscas no âmbito do inquérito sobre o gabinete paralelo.”Ele acha que vão fazer uma busca e apreensão em casa”, relatou o ex-ministro em ligação com a filha.

De acordo com Ailson da Trindade, o pastor Arilton também estava preparado para a chegada dos federais. “Eu liguei para ele. Perguntei o que estava acontecendo, ‘tá teu nome aí’, ‘como é que vai ficar, se vocês não vão falar nada da minha empresa…’. (Arilton teria dito:) ‘Não se preocupe que a gente não vai falar nada, tá? Já combinamos com o presidente e o ministro já, tá?’, que era Milton, né?. ‘O ministro já está providenciando tudo e a gente vai ficar calado, aí eu tô aguardando que a Polícia Federal a qualquer momento vem na minha casa, mas tá tudo já… tudo resolvido, tá tudo esquematizado’”.

Nesta quarta-feira, 21, as jornalistas Andréia Sadi e Julia Duailibi, da GloboNews, informaram que o delegado da PF Bruno Calandrini, responsável pela investigação sobre o gabinete paralelo no MEC, convocou dois delegados da cúpula da corporação. O interrogatório vai apurar as suspeitas de interferência na apuração contra Milton Ribeiro.

O inquérito da PF foi aberto após o Estadão revelar a existência do gabinete paralelo no MEC. Prefeitos contaram ao jornal que só conseguiam verbas para obras, como construção de escolas e creches, pagando propina aos pastores.

O acesso ao ministro também só era possível mediante acordo com os religiosos. Fotos mostram que os religiosos despachavam de dentro do gabinete do ministro. Ribeiro foi o quarto ministro da Educação do governo Bolsonaro e chegou ao cargo indicado pela primeira-dama Michelle Bolsonaro. Só foi demitido depois de a séria de reportagens revelar o esquema.

O advogado Daniel Bialski, que defende Milton Ribeiro, afirmou que o ex-ministro “nega absolutamente esse tipo de acusação, leviana, mentirosa e feita com intuito e interesse eleitoreiro”. “Isso não existiu e se essa pessoa materializar sua fala, será processado pela calúnia”, afirmou.

Procuradas, as defesas dos pastores Gilmar Santos e Arilton Moura não responderam.


OS MOTIVOS DE AILSON SOUTO

Ailson Souto é um empresário que atua nos ramos imobiliário e de construção. Natural do Pará, ele transferiu a sede de sua empresa para São Paulo. Ele não nega que seu patrimônio e suas relações políticas em Belém tenham feito dele alguém que empresta dinheiro a juros para políticos.

Ele se inscreveu para concorrer a deputado estadual pelo Progressista. Segundo ele, decidiu fazer a denúncia porque intimidações e ameaças de ex-aliados se tornaram insustentáveis. Ele diz que familiares têm sido abordados por interlocutores dos pastores e que precisou reforçar a sua segurança pessoal.


Trindade é um dos candidatos mais ricos, com uma evolução patrimonial pouco clara. Em 2012, concorreu a um cargo de vereador da cidade paraense de Porto de Moz e declarou R$ 15 mil em bens. Agora, são R$ 448 milhões, sendo R$ 390 milhões em lavouras de soja, R$ 39 milhões em criptomoedas e R$ 9 milhões em quadros e jóias.

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